Foi sobre pensões. Foi sobre o acesso ao aborto. Foi sobre sobre os jovens que partem. Foi sobre os imigrantes que chegam. Pode parecer estranho dizer que a esquerda ficou feliz por ver Pedro Passos Coelho, mas bastou que o antigo primeiro-ministro aparecesse uma vez na campanha para que o Bloco de Esquerda passasse a agitar o fantasma do seu Governo — colando-o a Luís Montenegro — a cada passo que deu neste terceiro dia de estrada. Fosse enquanto falava com idosas que se lembram dos cortes nas pensões ou enquanto lembrava a “epopeia” da troika, Mariana Mortágua não descansou enquanto não conseguiu recordar, de todas as formas e feitios, a memória do “governo desgraçado” do governo PSD/CDS que assusta a esquerda.

O plano do dia já estava feito, mas começou com uma coincidência feliz para o Bloco de Esquerda: o partido arrancou em São Teotónio, no concelho de Odemira, numa escola que acolhe imigrantes adultos que querem aprender português e os respetivos filhos, numa mistura de mais de 25 nacionalidades que desafia o engenho dos professores. Ainda assim, os que conversaram com a líder do partido mostraram-se otimistas e disponíveis para ajudar na integração possível (sendo certo que faltam professores de português como língua não materna e pratos que se assemelhem mais aos dos seus países de origem na cantina), o que serviu a Mortágua para elogiar o “bom exemplo”.

Esse bom exemplo trazia uma ponte fácil de ver para a intervenção de Pedro Passos Coelho, na noite anterior, na campanha da AD. Com o antigo primeiro-ministro a fazer uma declaração em que associava a imigração a um sentimento de “insegurança”, Mortágua classificou essa ligação como um “disparate de todo o tamanho” e aproveitou para “agradecer” a Montenegro por ter puxado Passos para a campanha.

Para a esquerda, e assumindo que entre o eleitorado do Bloco Passos não será exatamente uma figura popular, a aparição do ex-líder do PSD era uma espécie de combustível que ajudava a alimentar a sua campanha — assim como ajudava a alimentar os medos que o governo PSD/CDS ainda poderá suscitar junto de parte do eleitorado.

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Por isso, Mortágua aproveitou. “Quero agradecer-lhe [a Montenegro] o facto de ter trazido Pedro Passos Coelho para a campanha. Porque podia ter havido algum jovem, algum idoso, que se tivesse esquecido do que foi a governação do PSD quando cortou pensões apesar de ter dito que não o ia fazer, quando mandou os jovens emigrarem, quando expulsou os jovens do país dizendo que deviam sair da sua zona de conforto”, atirou. “Devíamos agradecer a Montenegro ter trazido a recordação desse passado. Venha mais vezes! Apareça mais vezes na campanha”. Rematou as declarações aos jornalistas acusando o PSD de “flertar” com ideias da extrema-direita.

Em Lisboa, num debate no Observador entre candidatos pelo círculo de Lisboa, o número dois, do partido, Fabian Figueiredo, carregava na mesma tecla, defendendo que “Passos Coelho veio à campanha para associar imigração à criminalidade e à insegurança e isso não pode passar em branco”. Com “orgulho” no papel que o Bloco teve em “tirar” Passos do poder, remata recordando que a sua participação na campanha “recorda a toda a gente como o país não tem nenhuma razão para ter saudades da governação da direita”. O discurso estava alinhado com o da líder.

A pensionista que entrou na campanha e o país que “não se esquece” (espera o Bloco)

O passo um estava dado: feito o elogio aos bons exemplos da integração de imigrantes e à forma como estes ajudam a combater a “desertificação” de regiões como o Alentejo, Mortágua e outros protagonistas do Bloco aproveitavam para recordar também outros fantasmas da troika. Mas na ação de campanha seguinte, uma arruada em Almada, teria uma ajuda: a enérgica militante Julieta Rocha, de 86 anos, foi fazendo de cicerone pelas ruas do concelho e acabou por levar as irmãs Mortágua (Joana é cabeça de lista repetente por Setúbal) ao encontro de uma idosa que imediatamente se queixou de Passos, num encontro semelhante àquele em que o próprio Montenegro se viu envolvido, também numa arruada.

Foi uma das pensionistas que atirou assim que Mortágua se aproximou: “Olhe, ainda não me esqueci da penalização que eu apanhei no tempo do Passos Coelho quando me reformei”. E a líder do BE assegurou prontamente que não acredita que o eleitorado tenha memória curta ou se tenha esquecido desses cortes — e, caso a memória se desvaneça, pretende reavivá-la sempre que puder.

Foi o que fez minutos mais tarde, voltando à carga em resposta aos jornalistas, que lhe perguntavam sobre a promessa fresca de Montenegro, que disse que se demitirá se tiver de cortar “um cêntimo” nas pensões: “Já ouvi as mesmas promessas feitas por outro líder do PSD, que cortou nas pensões. O país ouviu e conheceu um PSD que disse que não ia tocar um cêntimo nos salários e o que fez foi cortar reformas, salários, desrespeitar quem trabalhou toda uma vida. Há um país que não se esquece disso”, atirou.

Não houve espaço para grandes interações além de beijos rápidos e cumprimentos, até porque os bombos e os cânticos não permitiam conversas prolongadas (o BE, que nos tempos da troika cantava “Deixa passar/Eu estou na rua pró Governo derrubar”, usa a versão “Deixa passar/Eu sou do Bloco e o mundo vou mudar”).

Aborto e “racismo” atirados contra Passos e Montenegro

Faltava ainda o comício da noite, um dos pratos fortes da campanha, uma vez que aconteceu em Almada — no distrito de Setúbal, um dos três únicos em que o Bloco manteve deputados nestas eleições — e contou, como já tinha acontecido em 2022, com a presença do fundador e historiador Fernando Rosas, assim como de Joana Mortágua.

A cabeça de lista por Setúbal começou por falar da luta para despenalizar a interrupção voluntária da gravidez, mas também os atuais problemas no acesso a ela num SNS em tensão. E se pelos problemas atuais responsabilizou o PS, não deixou de lançar uma farpa a Passos: “Querem falar sobre insegurança? Falem sobre a insegurança que as mulheres vivem”, atirou, lembrando que antes da despenalização do aborto esta era a terceira maior causa de morte das mulheres em Portugal.

Logo a seguir, virou-se para o PSD de Montenegro, focando-se nas suas posições sobre o aborto. “Há agora quem queira vender a alma em troca do nosso esquecimento, mas eu não esqueço e as mulheres do meu país não esquecem, quem impôs reversões, quem quis que as mulheres fossem aconselhadas por objetores de consciência, quem impôs disciplina de voto à sua bancada [nesta matéria]. Essa pessoa tem um nome: Luís Montenegro”, atirou, lembrando a experiência do social democrata como líder parlamentar. E sentenciou: nestas eleições “estão em causa os direitos das mulheres, contra todos os conservadorismos que nos querem atirar para o passado”.

A seguir a Joana Mortágua, viria Fernando Rosas lembrar as promessas enganosas do voto útil, deixando pelo meio críticas ao “rasto de destruição económica e social que os portugueses não esqueceram” e que o Governo PSD/CDS, defendeu, deixou. Já a líder remataria a noite voltando ao início do dia e acusando Passos de regressar para lembrar aos portugueses a “epopeia” da troika — com um “cheirinho a racismo”, que disse ter detectado nas declarações sobre imigração, à mistura.

Mariana Mortágua repetiu as referências aos jovens que Passos “mandou emigrar” (um termo que o ex-líder do PSD recusa). Voltou a falar aos reformados que sofreram uma “talhada” nas pensões. Acusou Passos de jurar “fidelidade eterna” às políticas de austeridade. Disparou contra a direita por “não conseguir resistir” às tais posições extremistas para emigração. E acusou Montenegro de fazer uma “jura de vingança” à geringonça. No final, e apesar de também ter distribuído críticas à maioria absoluta do PS, mostrou-se satisfeita por a direita “ter voz para dizer quem é” e ajudar o eleitorado a fazer “melhores opções” no dia 10 de março. Com sondagens fracas para o partido e para o bloco da esquerda como um todo, os bloquistas continuam a acreditar que ressuscitar a memória de Passos e da troika pode ajudar a produzir resultados.