O realizador português António-Pedro Vasconcelos morreu esta terça-feira, aos 84 anos. A informação foi confirmada ao Observador pelo gabinete de comunicação do Ministério da Cultura.

O funeral do cineasta realiza-se na sexta-feira, dia 8, às 13h30, no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, onde o corpo estará a partir das 11h00, divulgou a família. O velório decorre esta quinta-feira, 7 de março, na Gare Marítima de Alcântara, entre as 15h00 e as 22h00, estando marcada uma cerimónia evocativa para as 18h30, de acordo a informação enviada à agência Lusa.

Figura de proa do Cinema Novo Português, a sua primeira longa-metragem foi Perdido por Cem (1973). Notabilizou-se por ter sido responsável por alguns dos maiores sucessos de bilheteira do cinema nacional, como aconteceu com o filme O Lugar do Morto, em 1984, e Jaime, em 1999. Este último valeu-lhe a Concha de Prata do Festival Internacional de Cinema de San Sebastián, e em Portugal, os Globos de Ouro para Melhor Filme e Melhor Realizador.

O seu filme mais recente foi Km 224, em 2022, e Parque Mayer, em 2018, ano em que a Cinemateca Portuguesa lhe dedicou uma retrospetiva completa. Dizia então, em entrevista ao Observador, que “o cinema português hoje é irrelevante”. Nos últimos tempos, trabalhava numa adaptação de Lavagante, conto inacabado do escritor José Cardoso Pires, editado a título póstumo em 2008. António-Pedro Vasconcelos deixa dois filhos: a diretora de casting Patrícia Vasconcelos e o colecionador Pedro Jaime Vasconcelos.

Nascido em Leiria em 10 de março de 1939, “APV”, sigla pela qual era habitualmente identificado, foi realizador, produtor, crítico, professor, tendo fundado o Centro Português de Cinema, como indica a biografia na Academia Portuguesa de Cinema.

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A bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian em 1961 — a primeira atribuída a cinema —, levou-o a estudar na prestigiada Universidade de Sorbonne, em Paris. Chegou à capital francesa já com o desejo de ser realizador. “A ideia formou-se nos meus anos de estudante. Eu era sobretudo um devorador de livros. Eu lia, lia, lia e um dia descobri o cinema”, contava. De volta a Portugal, começou por trabalhar em publicidade, a que se seguiram os documentários Exposição de Tapeçaria (1968) e Fernando Lopes-Graça (1971).

Os primeiros filmes de ficção (“O universo que me interessava era o universo da ficção”, sublinharia), Perdido por Cem… (1973), Oxalá (1979), O Lugar do Morto (1984) estabeleceram-no como importante voz da “segunda geração” do Cinema Novo, ao lado de Alberto Seixas Santos (1936-2016) ou João César Monteiro (1939-2003). Mais tarde, reconciliou o cinema português com o grande público, ao trabalhar continuamente com o produtor Tino Navarro em êxitos de bilheteira como Os Imortais (2003), Call Girl (2007), A Bela e o Paparazzo (2010), Os Gatos Não Têm Vertigens (2014). “O cinema é, e sempre foi, uma arte popular”, resumiu na mesma entrevista ao Observador.

O cineasta, que completaria 85 anos este domingo, teve também um papel relevante na definição de políticas públicas para o setor. Foi presidente do grupo de trabalho para o Livro Verde da Comissão Europeia sobre a indústria audiovisual e, entre 1991 e 1993, foi coordenador do Secretariado Nacional para o Audiovisual. Criticava o rumo da produção portuguesa na área do cinema de autor, que acusava de ser “desligado da realidade”.

Se foi a ficção que o celebrizou, António-Pedro Vasconcelos assinou ainda dois documentários sobre a emigração portuguesa: Adeus, Até ao Meu Regresso (1974) e EmigrAntes… e Depois? (1976). Atualmente, estava a preparar uma série documental sobre os bastidores 25 de Abril para a RTP. A Conspiração, com seis episódios, está prevista para se estrear este ano, lê-se numa notícia da Gazeta das Caldas.

Figura habitual na televisão, nas últimas décadas, APV envergava sempre um chapéu, acessório que viria a tornar-se a sua imagem de marca. “Uso chapéu já há muitos anos, porque o meu otorrinolaringologista achou que eu devia proteger a cabeça, pois sou atreito a constipações e tenho uma sinusite e uma rinite alérgica muito forte, que me incomoda em particular nas mudanças de estação…”, explicava à revista Caras em 2010. “Ando para ser operado há 30 anos e nunca arranjei tempo, preciso de parar uma semana e não tenho. Portanto, tenho adiado isso e o chapéu protege-me. E hoje em dia, se não uso, sinto a falta. É já um hábito, não é por achar que me fica bem…” Fiel à Chapelaria Azevedo Rua (Forbes, 2018), chegou a pôr a atriz Soraia Chaves a sair da loja no Rossio, em Lisboa, numa das cenas do filme A Bela e o Paparazzo (2010).

“O maior defensor de uma certa ideia de cinema de grande público”

“Se os seus primeiros filmes eram filmes muito aclamados pela crítica, depois teve outros grandes êxitos aclamados pelo público. Seguiu sempre essa sua linha, misturado com a crítica de cinema e com as séries que também produzia e viabilizava para televisão”, recorda Paulo Trancoso, presidente da Academia Portuguesa de Cinema, à Rádio Observador. “Era um homem de grandes causas cívicas”, diz ainda. “Vamos ficar mais pobres em termos da cultura e da cidadania, porque ele estava sempre atento às grandes causas e tentava mobilizar as pessoas”.

Pedro Mexia, antigo subdiretor da Cinemateca, recorda também um homem “muito interventivo nas querelas do cinema português”. “A partir d’O Lugar do Morto, que foi um grande sucesso de bilheteira, na altura o maior do cinema português, tornou-se o maior defensor de uma certa ideia de cinema de grande público, que como se sabe não é consensual entre os cineastas portuguesas”, lembra à Rádio Observador.

Ana Zanatti e Pedro Oliveira em “O Lugar do Morto” (1984)

António-Pedro Vasconcelos “foi sempre uma figura ligada aos filmes que fez e às polémicas que protagonizou por causa dessa ideia, em termos de discussão de financiamento, de projeção internacional do cinema português. Foi uma figura muitíssimo presente quer como autor, quer como militante de um certo entendimento do cinema”, continua Mexia, lembrando um autor que preconizava “a ideia de que o cineasta também é um intelectual e também é uma figura cívica, que não se limita a fazer filmes no seu canto, mas está ligado aos movimentos sociais, às querelas e ele gostava disso”. António-Pedro Vasconcelos “gostava da polémica, gostava desse confronto público”.

Também o Presidente da República recorda “um dos críticos e cineastas que prolongaram a esperança num cinema novo português, desalinhado do regime e alinhado com o cinema europeu”. Numa nota de pesar publicada esta manhã no site da Presidência, Marcelo Rebelo de Sousa presta homenagem a um “homem culto, frontal, interventivo e intempestivo, gostava de literatura, da clareza e acutilância da prosa de Stendhal, dos grandes mestres do cinema clássico americano, e envolveu-se em campanhas políticas e em combates cívicos, ligados por exemplo à RTP e à TAP”.

António Pedro Vasconcelos liderou o protesto contra a privatização da RTP, e voltou a fazê-lo desta feita para TAP, em 2015, por defender que estas duas empresas são “instrumentos preciosos e únicos” para ligar Portugal ao mundo da língua portuguesa e sobretudo aos portugueses da diáspora.

António-Pedro Vasconcelos: “Se pudesse, teria feito um filme por ano”

Voz ativa no debate público, assinava com frequência artigos de opinião, tendo sido o último publicado em Outubro no jornal Público (Para que serve um Ministério da Cultura?). Nele escrevia: “Não houve até hoje um único governo que definisse e pusesse em prática, com clareza, coerência e eficácia o que deve ser o papel do Estado na cultura, onde os criadores sofrem os efeitos de três gritantes condicionamentos: falta de meios, de mercado e do Estado”.

“Foi além de tudo e antes de tudo, um cidadão empenhado e inconformado, comprometido desde sempre com os rumos da democracia”, nota o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, numa publicação no X. Na mesma rede social, Pedro Nuno Santos destaca “um dos grandes cineastas portugueses do nosso tempo”, que “deixa uma obra que fez dele uma figura incontornável da cultura portuguesa, com um percurso notável nas áreas do cinema, do jornalismo e da docência”, relevando “a sua participação cívica na campanha presidencial de Mário Soares, de quem foi amigo próximo, e o exercício de cidadania do qual nunca abdicou”.

Benfiquista fervoroso, cidadão interventivo

“Um homem da cultura e de benfiquismo devotado e sem limites”, assim é definido António-Pedro Vasconcelos na nota de pesar publicada esta quarta-feira no site do Sport Lisboa e Benfica. Conhecido adepto benfiquista, o cineasta português familiarizou-se junto do grande público da televisão precisamente enquanto comentador desportivo pelo clube da Luz.

“Comecei por escrever artigos sobre futebol, porque tinha lido um livro do Nelson Rodrigues de crónicas sobre futebol e fiquei entusiasmado. Naquela época, a meio dos anos 90, pensei mesmo que a minha carreira como realizador de cinema tinha acabado”, explicou o cineasta em entrevista ao Expresso em 2018. As crónicas acabariam no livro Porque é que as Mulheres não Gostam de Futebol? (ed. Oficina do Livro, 2001). Pouco depois, foi convidado para fazer comentário desportivo na televisão, primeiro na SIC e, mais tarde, na RTP, inaugurando o programa Trio d’Ataque. “O comentário desportivo foi uma atividade que, basicamente, foi o meu principal modo de vida durante esse período”, recordou o realizador na mesma entrevista.

O realizador António-Pedro Vasconcelos com a atriz Maria do Céu Guerra enquanto o ator Nicolau Breyner estuda o guião durante a realização do filme “Os gatos não têm vertigens”, em 2013

Ser benfiquista fervoroso nunca beliscou a sua dedicação ao cinema, nem a intervenção ativa em variadas causas, da privatização da TAP à RTP, da política cultural ao financiamento. “Considero que é uma obrigação que todos os cidadãos têm, mas ainda mais as figuras públicas, de se baterem por causas que não são do seu interesse imediato. Para mim, é natural. O meu sonho era ter uma associação em que todas as pessoas que têm visibilidade pública, cantores, escritores, atores, entrassem — e cada um era a cara de uma causa”, dizia ao Expresso em 2018.

Em 2016, a editora Guerra & Paz publicou um livro do realizador em diálogo com o escritor José Jorge Letria, com o título Um cineasta condenado a ser livre.