Uma das maneiras mais usuais de retratar uma mulher como “estando só” é de a transformar, independentemente da sua idade, numa “velha dos gatos”, com mais pequenos felinos do que seria recomendável na sua habitação e a adivinhação de um cheiro a areão pelo ar. Do mesmo modo, quando apareceu o Facebook e o Instagram e se queria descrevê-los como uma frívola perda de tempo, dizia-se que não passavam de uma sucessão de fotos de gatinhos. Até na política, o PAN era considerado “o partido dos gatinhos” como sinónimo de inocuidade — já para não falar da chacota a Zé Albino, o gato de Rui Rio que foi estrela de Twitter em legislativas passadas. Nos desenhos animados, o gato é quase sempre o vilão, de Tom a Sylvester, passando pelas sagas de Fievel, Pokemon ou até Toy Story. Quem gosta de gatos pode ser muito vocal e usá-lo como traço de personalidade, mas quem os despreza não fica atrás. O desabafo “odeio gatos” é encarado com uma naturalidade que não se aplica a outros mamíferos.
Pelos vistos, estas questões já vêm de longe. História dos Gatos, agora publicado em Portugal pelas Edições 70 (tradução de Ricardo Mangerona) foi escrito por François-Augustin de Moncrif (1687-1770) em 1727. Moncrif foi contemporâneo de Voltaire e marcou o pioneirismo na defesa dos gatos, tratando-se muito provavelmente do primeiro livro totalmente sobre os felinos domésticos. Num estilo que oscila entre o burlesco e o sincero, entre o humorístico e o académico, este conjunto de cartas e poemas analisa a evolução do papel dos gatos na sociedade ao longo dos tempos, da sua adoração como divindades até à sua vilificação como criaturas malignas — até se estabelecerem como os leais e independentes companheiros dos lares franceses e não só.
Moncrif foi membro da Academia Francesa, mas os seus livros são amplamente esquecidos, com a exceção deste (que, mesmo assim, está longe de ser tratado como uma obra de referência). Se o tema dos gatos hoje até poderia ser comum num livro (Doris Lessing, Nobel da Literatura, escreveu extensivamente sobre eles), na altura foi considerado um desperdício de tempo para um autor com qualquer pretensão de credibilidade. François-Augustin foi alvo de tanto gozo que retirou o livro de circulação. Dez anos depois da edição, Claude-Guillaume Bourdon de Sigrais respondeu~lhe com uma História dos Ratos, livro que não se encontra traduzido por cá — e por lado quase nenhum, em abono da verdade.
Título: “História dos Gatos”
Autor: F.-A. Paradis de Moncrif
Tradução: Ricardo Mangerona
Editora: Edições 70
Páginas: 168
História dos Gatos divide-se em dez cartas endereçadas a uma Sra. Marquesa de B***, algumas incluindo poemas (que esta edição deixa em versão bilingue, em português e francês) e até uma árvore genealógica. O início do livro, porém, é uma longa (tendo em conta as apenas 157 páginas totais do livro) introdução do editor George Frappe, assinada em 1909. Frappe descreve o autor como sendo “da raça desses admiráveis filósofos egoístas. Procurava sempre, no canto da chaminé (…) a pastora em que pudesse enroscar-se delicadamente, como o gato ocupa o seu travesseiro”. Diz também que Moncrif foi um “homem de letras, parasita, funcionário, académico, amante inveterado daquelas raparigas, rei cínico do espírito e da alma”.
Logo no início, o autor aborda a dor de sentir os gatos sempre destratados, “caracterizados como perigosos ou ruins”. Apesar de desde cedo se perceber que muito o que daqui está será uma metáfora para outros temas sem garras, é de facto patente um genuíno amor pelos pequenos felinos e uma angústia pela desconsideração. Moncrif considera que “a História dos Gatos devia, pois, despertar naturalmente a emulação dos Escritores mais ilustres” e por isso decreta: “ousarei intentar nessa Obra”. A História dos Gatos cimenta-se várias vezes no contexto histórico da relação entre humanos e gatos (do antigo Egito aos árabes ou à Índia, sem esquecer menções bíblicas), para daí extrapolar comparações que os implicam na música, na arte, na medicina, na linguagem, no contrato social. O gato como peça fundamental para, afinal, compreendermos o Homem.
Considerando que “temos no Gato um amigo de muito boa companhia, um pantomineiro admirável, um Astrólogo nato, um Músico perfeito, enfim, o cúmulo de todos os talentos e graças”, o francês não resiste, mais para o fim da obra, de fazer uma comparação com os cães, eternos rivais na atenção humana. Vê os “Gatos num repouso e numa abundância que não obtêm dos homens. Não poderemos, então, reconhecer que é por pura cortesia que os Gatos concedem ter comércio connosco? Livres na escolha da sua pousada, habitam, conforme a sua ambição ou filosofia, os pórticos do Monarca, ou o simples telhado do Cidadão”. Por outro lado, instiga: “os Cães só se afeiçoam a nós porque sem o nosso sustento morreriam”.
Moncriff lamenta-se sobre a morte precoce dos gatos (o tempo médio de vida anda pelos 15 anos): “Como é que a Natureza pode conservar tão pouco tempo coisa que parece ter feito com tanto prazer?”. História dos Gatos, mesmo tendo causado vexame ao seu ator, parece também ter sido feito com muito prazer. O resultado final é, quase 300 anos depois, um pouco hermético, mas com algumas passagens que demonstram um raciocínio interessante e provocador.