Quando, a 25 de abril de 1974, a multidão se acotovelava no Largo do Carmo, em Lisboa, à espera da rendição de Marcello Caetano, ele estava lá no meio, a vibrar e a absorver todos os detalhes daquele momento histórico que libertava Portugal da ditadura. Talvez por isso, tenha ficado tão fascinado com esse período. Talvez por isso, a Associação 25 de Abril lhe tenha chamado “civil de Abril” na homenagem que lhe prestou quando António-Pedro Vasconcelos morreu a 5 de março deste ano.
O cineasta já tinha abordado o tema num documentário de 2017, A Voz e os Ouvidos do MFA, mas o seu maior projeto sobre o caminho para a Revolução — previsto para o 50.º aniversário — ficou por acabar quando o realizador foi internado com uma pneumonia, a que acabaria por não resistir. Porém, A Conspiração não podia ficar em pausa e foi terminada, estreando-se esta quarta-feira, 24 de abril, tal como estava previsto.
Pensada, realizada e narrada (pelo menos as partes que conseguiu deixar terminadas) por António-Pedro Vasconcelos, esta série documental divide-se em nove episódios. O primeiro é exibido a 24 de abril, às 21h30, na RTP1. No dia 25 é transmitido o segundo e os restantes sete vão para o ar um a um, semanalmente.
[o trailer de “A Conspiração”:]
Ao longo das últimas décadas foram contados e recontados todos os minutos do dia em que o Estado Novo foi derrubado. Os episódios de bastidores, os protagonistas, as peripécias, as reações espontâneas da população e os momentos emotivos. No entanto, assistindo aos primeiros capítulos de A Conspiração, parece que, afinal, ainda havia muito para descobrir e é preciso recuar alguns meses para perceber que o rastilho que conduziria à Revolução se acendeu essencialmente com uma medida do governo vista como uma afronta pelas Forças Armadas.
António-Pedro Vasconcelos começa por contextualizar: estamos em 1961 e, nas frentes de batalha de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, os capitães começam a ficar fartos das condições de uma guerra que, percebem claramente, nunca conseguirão ganhar. Na metrópole, a necessidade de formar mais soldados e de reforçar o exército é tanta que o governo decide que a progressão na carreira dos novos recrutas será muito mais rápida, podendo assim tapar os buracos existentes mas ultrapassando em muitos casos os profissionais que, até ali, demoravam anos a subir a escada da hierarquia. Nasce assim o decreto-lei 353/73 e, com ele, cria-se uma bomba relógio que culminará no 25 de Abril.
A Semente Revolucionária, assim se chama o primeiro capítulo, é narrada pelo jornalista Adelino Gomes (que assumiu esse papel, terminando o que foi começado pelo realizador). Não é o início mais dinâmico para um projeto chamado A Conspiração, mas é essencial para situar cronologicamente os acontecimentos fulcrais da história. No segundo episódio, Os 136 Oficiais, a série ganha ritmo e dispara, tornando-se um verdadeiro thriller, apoiado por uma banda sonora muito subtil, que se ouve ao fundo a marcar o compasso de suspense e tensão enquanto os intervenientes da conspiração contam como tudo aconteceu.
Felizmente, são muitos e contribuem para uma riqueza histórica impressionante reunida num só trabalho. Alguns mais contidos, outros com a mesma exaltação de há 50 anos, guiam-nos por um mundo secreto de encontros clandestinos que começaram no verão de 1973. Vasco Lourenço, Jorge Golias, António Ramalho Eanes, Otelo Saraiva de Carvalho, João Mariz Fernandes, Rodrigo Sousa e Castro, António Rosado da Luz, Mário Mendóça Frazão e dezenas de outros capitães explicam como a vontade de travar um decreto que era injusto para as respetivas carreiras se transformou em algo muito maior, alimentado por um descontentamento que só podia ser sussurrado à porta fechada.
A trama começa a ganhar forma no primeiro episódio, sempre apoiada por filmagens e fotos de arquivo, mas na segunda parte alguns momentos descritos pelos capitães são apoiados por ilustrações que nos dão uma perceção mais nítida do que aconteceu, como o momento em que os capitães foram convocados para um encontro secreto na zona de Évora — a primeira grande reunião onde decidiram que era necessário juntarem-se todos para tomar medidas.
Ponto de encontro: templo de Diana. Era aí que Vasco Lourenço estaria a distribuir croquis que indicariam o caminho para o local combinado, a Herdade Monte Sobral, em Alcáçovas. Problema: de repente, a praça estava cheia de “homens à paisana, a fingirem que não se conheciam, todos com o mesmo corte de cabelo à Beatles”. O episódio foi tudo menos discreto, tal como os mais de cem carros que se amontoaram nas traseiras da quinta, onde se reuniram num celeiro, sentados em fardos de palha. Foi aí que os mais radicais gritaram que era urgente fazer uma revolução e os mais contidos propuseram uma medida mais ponderada, um requerimento assinado por todos para travar o tal decreto. A maioria saberia certamente, já aí, que a rebelião contra a ditadura estava em marcha e voltar atrás ou deixar tudo como estava não era opção.
Este episódio conta com a narração de António-Pedro Vasconcelos que, sentado numa sala de edição e a encarar a câmara, serve de ligação para os vários momentos. Gesticulando de forma empolgada, com os seus característicos “s” carregados e com um profundo conhecimento sobre o que está a contar, mantém-nos colados ao ecrã, como se estivéssemos sofregamente a beber todos os segundos de uma aula de História. A Conspiração passará a ser, seguramente, uma peça valiosa sobre o caminho que se fez até à Liberdade e uma homenagem a quem, mesmo ciente das possíveis consequências, ocupou os lugares da frente de um comboio que em muitos momentos podia ter descarrilado. Além disso, será uma homenagem ao homem que idealizou o projeto e lhe dedicou os últimos anos de vida, António-Pedro Vasconcelos, o “civil de Abril”.