A diretora da Obra Católica Portuguesa de Migrações (OCPM), Eugénia Quaresma, diz não ter razões para duvidar da credibilidade do relato das agressões contra uma criança nepalesa numa escola da região de Lisboa — uma denúncia que veio a público esta semana pela voz de uma instituição da Igreja Católica, mas que nos últimos dias se viu marcada por informações contraditórias entre a instituição, o Ministério da Educação e o Ministério Público.

Em declarações ao Observador, Eugénia Quaresma, responsável máxima pelo organismo da Conferência Episcopal Portuguesa que trata os temas das migrações e da mobilidade humana, disse que “não faz sentido” duvidar da credibilidade do caso e garante que a própria controvérsia suscita questões sobre a importância da existência de canais de denúncia seguros.

Eugénia Quaresma falava ao Observador no final de um dia que ficou marcado por uma reunião do FORCIM — Fórum de Organizações Católicas para a Imigração, um fórum coordenado pela OCPM que inclui várias instituições, entre as quais o Centro Padre Alves Correia (CEPAC), entidade religiosa da qual partiu a denúncia original. Segundo a Agência Ecclesia, o caso foi discutido nesta reunião do FORCIM, que condenou as agressões.

Questionada sobre se as informações contraditórias que se seguiram à primeira denúncia (como o facto de o Ministério da Educação ter dito desconhecer o caso) deixavam a palavra da Igreja em causa, Eugénia Quaresma considerou que não. “Se houve uma transferência de escola e não registaram que a razão foi esta, como é que a escola assume o caso?“, questionou a responsável, assinalando que, num caso assim, “não há provas” documentais do caso.

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Para Eugénia Quaresma, este caso mostra a importância da existência de canais de denúncia seguros. “Como é que estão os canais de denúncia para que as pessoas se sintam à vontade?”, pergunta, sublinhando que este é um caso em que “não houve uma denúncia formal” porque a família terá sentido medo de avançar com esse processo, algo que é comum quando “as pessoas se sentem vítimas”. Essa terá sido também a razão pela qual não houve uma “queixa ao Ministério Público” numa primeira fase.

Por outro lado, também o facto de o Ministério Público ter, entretanto, confirmado a receção de uma participação em que a única nacionalidade mencionada — a da mãe da vítima — não é nepalesa não é suficiente para Eugénia Quaresma duvidar do relato inicial. “A mãe pode não ser nepalesa, mas o pai pode ser“, exemplificou a responsável, afirmando que também não conhece os detalhes da história.

Não tenho motivos para acreditar que não tenha acontecido assim“, destacou Eugénia Quaresma, que lembrou que “todos aqueles que falaram com o CEPAC sabem que aconteceu há uns meses”. A inexistência de um rasto documental faz com que seja “a palavra de uma entidade contra um sistema”, disse Eugénia Quaresma, que salientou a necessidade de “ampliar as boas práticas e os bons exemplos”.

Sublinhando que confia na “bondade” dos portugueses no acolhimento dos imigrantes, Eugénia Quaresma salientou que é necessário ter “uma ação assertiva sobre comportamentos violentos e criminosos”.

O caso surgiu na terça-feira, quando a Rádio Renascença noticiou que um menino nepalês de nove anos tinha sido “vítima de linchamento” numa escola de Lisboa. A notícia da Renascença baseava-se nas declarações de Ana Mansoa, a diretora executiva do Centro Padre Alves Correia (CEPAC), uma instituição da Igreja Católica que se dedica ao acompanhamento de imigrantes em Portugal.

“O filho de uma senhora acompanhada pelo CEPAC, que tem nove anos, e que é uma criança nepalesa, foi vítima de linchamento no contexto escolar por parte dos colegas. Foi filmado e divulgado nos grupos do WhatsApp das crianças”, contou Ana Mansoa àquela rádio, explicando que a criança ficou com “hematomas pelo corpo todo”. Os ferimentos foram tratados pela mãe da criança, que “teve medo e quis evitar ir a um hospital ou centro de saúde”.

Segundo a mesma versão, a família da criança agredida teria acabado por pedir transferência de escola, enquanto as crianças agressoras (que terão gritado expressões como “vai para a tua terra” ou “tu não és daqui”), foram punidas de forma leve: uma delas foi suspensa por três dias pela escola. A escola não terá denunciado o caso — e a própria família também não apresentou queixa às autoridades, por medo de sequelas. As agressões tiveram um forte impacto psicológico no menor, que “acorda de noite com pesadelos e a chorar”, e recusa ir para a escola.

Na notícia original, não foi identificada a escola onde as agressões ocorreram. A ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, anunciou um reforço do policiamento junto das escolas portuguesas na sequência do caso. Contudo, nas horas que se seguiram à publicação da notícia, surgiram várias informações contraditórias que lançaram a confusão em torno do caso.

Questionado pelos jornalistas, o Ministério da Educação esclareceu na quarta-feira que não tinha conhecimento do caso. Segundo uma comunicação escrita do gabinete do ministro Fernando Alexandre, os serviços do ministério “contactaram a associação que denunciou o alegado episódio [à Renascença], tendo esta inicialmente recusado colaborar”.

“Após insistência, os serviços da DGEstE conseguiram apurar o estabelecimento de ensino em que a suposta agressão teria ocorrido, que afirmou desconhecer qualquer agressão”, explicou o Ministério da Educação. “Contactada a escola em causa, na Amadora, a direção informou que os únicos alunos de nacionalidade nepalesa a frequentar o Agrupamento estão no Ensino Secundário. Informou ainda desconhecer por completo o alegado episódio ou qualquer situação semelhante, não tendo inclusive recebido qualquer participação sobre um ato idêntico.”

O ministro da Educação, Fernando Alexandre, também se pronunciou de viva voz sobre o caso, afirmando aos jornalistas que, “à partida”, o caso teria ocorrido “fora da escola”.

Já depois destes desenvolvimentos, o CEPAC voltaria a pronunciar-se sobre o caso, apenas através de comunicados escritos. Num primeiro momento, a organização garantiu que já participou o caso às autoridades, a quem cabe “fazer o seguimento da situação”. Num segundo momento, o CEPAC explicou que a sua diretora contou o caso à Renascença durante uma “conversa telefónica, que se teve de boa-fé”.

Ana Mansoa foi questionada pela Renascença sobre “casos concretos que sustentassem a preocupação manifestada em relação ao aumento de atitudes e comportamentos racistas e xenófobos e à urgência de combater o discurso de ódio, em particular contra as pessoas migrantes”. Na resposta, durante a conversa telefónica, “foi referido como exemplo, de memória, o caso em questão, conforme artigo e declarações gravadas que vieram, parcialmente, a público”.

O CEPAC informou ainda que “não prestará mais declarações sobre o caso aos meios de comunicação social” e apelou “ao respeito pela privacidade da criança e sua família e demais partes envolvidas”.

Já esta quinta-feira, a Procuradoria-Geral da República confirmou ter recebido uma denúncia, mas disse que a única nacionalidade indicada é a da mãe da vítima — que não é nepalesa. Também na quinta-feira, o Patriarcado de Lisboa, que tutela canonicamente o CEPAC, confirmou ao Observador que estava em contacto e a acompanhar de forma próxima o caso.