Cada editora é, ou deveria ser, um laboratório de ideias e um corpo que cresce exercitando músculos e esticando braços ou pernas para se fixar em novos campos, temas e modos de fazer, numa busca contínua — comercialmente valorosa, também — de originalidade e personalidade inconfundível. Não faço favor nenhum à Planeta Tangerina em classificá-la como uma das mais estimulantes fábricas de livros do nosso país, e a comprová-lo estão duas novas produções da sua chancela: um livro-disco e uma banda desenhada produzida durante um mestrado de graphic storytelling.
Título: “Gato Comum”
Texto e ilustrações: Joana Estrela
Editor: Planeta Tangerina
Páginas: 104
Preço: 16,90 €
Mais Alto! é um livro-disco com textos de Isabel Minhós Martins e ilustrações de Bernardo P. Carvalho, que acompanha a partir de agora as apresentações do concerto comentado criado no Teatro LU.CA, em Lisboa, partindo do pressuposto de que «as músicas também podem ser documentos históricos e dar-nos pistas sobre como era a vida num lugar, numa dada época: o que preocupava as pessoas, que sonhos as moviam, que injustiças as entristeciam ou, pelo contrário, o que as fazia felizes» (da contracapa). Entre as 11 canções escolhidas estão as inesquecíveis «A formiga no carreiro» de José Afonso e «Caixinhas (Little Boxes)» de Malvina Reynolds, na versão da brasileira Nara Leão, e de estas como de todas as outras há no fim do livro uma nótula «biográfica» e um comentário ajustado ao seu público, mostrando também que «a democracia pede a toda a hora a nossa participação» e «nunca está pronta ou acabada». Esta pedagogia cívica instruída com as figurinhas divertidas que Carvalho pôs a dançar, tocar e cantar em exuberantes composições cromáticas não excede os limites do razoável, não pisa o risco de se tornar uma descarada cartilha político-ideológica imposta a indefesos infantes «de 7-9 anos» (sic), como sucede com Dita Dor de António Jorge Gonçalves e com Sempre! de Rita Taborda Duarte e Madalena Matoso, dois livros que a Assembleia da República de Augusto Santos Silva fez imprimir há pouco, em mais umas comemorações «republicanas» de orçamento chorudo e dose excessiva, prometendo uma exaustão que bem arrisca ser contraproducente. É quase como querer forçar alguém a comer o que quer que seja. Não se faz!
Gato Comum, banda desenhada de Joana Estrela — ao invés — é um prodígio de construção narrativa, sugestiva simplicidade visual e olhares entrecruzados (veja-se, desde logo, o jogo reflexivo de capa e contracapa), que nos conta a passagem do gato Manel pela vida de Cristina e dos seus pais e a lição do perpétuo recomeçar da vida que a morte do bichano lhes deixou em herança. De caminho, sobre diferente fundo de página há também a história — «tantas vezes repetida» à hora do dormir… — de Tareco, o felino que se escapou num piquenique e três dias depois conseguiu voltar a casa («um mistério que só o Tarecosabia, e nunca contou»). Uma família com gatos tem prevenções, rotinas, dúvidas e inquietações — e agora tem também tutorials… —, mas sobretudo tem afectos diferenciados, senão mesmo perplexidades, como a de um deles ser preferido pelo dono da casa com quatro patas. A certa altura, Estrela desenha a síntese perfeita desse panorama doméstico na dupla página em que os três observam, em posturas distintas, o gato que não consegue beber a água que a sua saúde exige. E vai mais além: «Fico a pensar como as famílias são uma coisa tão aleatória. — Calhou sermos a família uns dos outros. — Calhou este gato ser o nosso gato».
«Há sítios onde o gato não pode ir. Há sítios onde pode. Há sítios onde pode e não pode dependendo da hora do dia. Estas regras são tão antigas que se tornaram inconscientes». Quer isto dizer, a vida do gato determina a gestão da casa até o momento em que o seu desaparecimento permite enfim «abrir todas as portas, todas as janelas», ao mesmo tempo que o luto consistirá em abrir «todas as gavetas» que contam «a história de todas as versões de quem já foste», pois «pode ser preciso abrir espaço para a nova versão que aí vem». Assim acaba o livro, com a personagem-narradora deitada na cama do seu quarto, com as cortinas agitadas pelo vento, e na última folha vemos ainda uma caixa aberta ao futuro (quase se poderia dizer, aberta ao próximo gato que nela se queira instalar). Entretanto, o ensino possível do luto não é coisa de somenos, e fazê-lo a pretexto dum bichano de 17 anos — afinal, também a idade da própria Cristina, o que fixa um contraste de longevidade — é um bom caminho a cumprir, pois, já se sabe, jamais estaremos suficientemente preparados para ele. Também nesse sentido os gatos ensinam-nos a viver. E a morrer aos poucos, e devagar.