O bolo que tenho diante de mim chama-se tíbia. O nome, explicam-me, deve-se à parecença entre este exemplar da pastelaria minhota e aquele osso da perna. Não me convencem. Num homem adulto médio, a tíbia alonga-se por uns 43 cm, vai do pé ao joelho e é popularmente conhecida por canela. Acontece que o bolo que tenho diante de mim fica-se por uns modestos 12 cm e dá mais ares à ferramenta de São Gonçalo, outra delicatésse minhota, que por sua vez se inspira num segmento diferente da anatomia masculina popularmente conhecido por muitos nomes. Tíbia não é um deles.

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Perco-me nestas considerações à mesa da nova pastelaria Suíça. A princípio, sinto-me vagamente culpado por misturar pensamentos brejeiros com loiça Vista Alegre. Mas rapidamente me perdoo. Primeiro, porque o disparate é um direito inalienável na assembleia dos meus neurónios. Depois, porque mesmo que debitasse a alarvidade em voz alta, estaria a salvo de vergonhas: nesta casa apinhada às 11.00 de uma manhã de semana, desconfio que apenas os empregados falam português, e mesmo eles, todos brasileiros, talvez não captassem a referência fálica ao santo casamenteiro de Amarante.

O preconceito

A tíbia é uma tentação da doçaria conventual de Braga e não custa imaginar que a freira que lhe deu forma tivesse um sentido de humor apurado. Mas é também património da velha pastelaria Suíça, que chegou aos 96 anos, faleceu em 2018 e foi chorada por muitos. Esta outra casa, que agora se estreia junto às traseiras da antiga, assume-se como “uma homenagem”. Recupera a marca e o receituário, a imagem e o imaginário, mas descreve-se como “reinterpretação de uma casa emblemática, que deixou saudades e era orgulho para os lisboetas”. E foi este verbete, confesso, que me fez chegar até aqui de pé atrás.

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Reinterpretar é uma palavra que me encanita. Soa-me sempre a verbo de encher para conceitos ocos. Além do mais, sinto que o prefixo da repetição raramente faz sentido, porque interpretar é um ato criativo singular: interpreta-se certa coisa de determinada maneira. Se a mesma coisa é interpretada com outro resultado, é simplesmente uma interpretação diversa; se o resultado for o mesmo, é porque a interpretação também é. Vai daí, quando ouvi falar em “reinterpretar” a Suíça preferi imaginar que já andavam a fazer covers da Eurovisão.

Admito que esta observação nasce mais do meu feitio jarreta e menos dos meus dotes de linguista. A verdade é que tenho um certo preconceito com a cidade dos conceitos e no caminho para aqui já vinha a matutar sobre o que significa toda esta ressignificação. Que Lisboa inventamos com tanta reinvenção? Até chegar ao número 5C da Praça da Figueira, atravesso a Baixa em alvoroço de feira, lojas de quinquilharia very typical, menus ilustrados, o novo mascarado de antigo, tanta coisa established since quarta-feira passada, um país a fazer a caricatura de si mesmo. Chego cansado, velho e ranzinza. Mas modero a exasperação no exato momento em que levo a tíbia à boca – salvo seja.

O conceito

A massa desta tíbia fica algures entre o sabor de um éclair e a leveza de um profiterole: firme, mas suave, fofa, mas consistente, o interior a fazer concha. Lá dentro, um tutano de nata fresca, levíssima e frugal no doce, em vez do tradicional creme de pasteleiro. O conjunto é de um equilíbrio precioso, uma delicadeza que pede talher e assenta lindamente na loiça debruada a dourado. Quem olha, pode até achar que vai comer uma javardose de farinha, manteiga e açúcar. Mas nem tudo é o que parece e quem olha também não vê ali a forma de uma tíbia.

Esta é uma das várias peças da coleção Suíça que os novos detentores da marca garantem preservada e fiel aos preceitos originais. Éclairs e duchesses, russos e esquimós, babás e jesuítas alinham-se na montra como joalharia. À frente, uma fila persistente de clientes, que se estende da porta até à caixa de pré-pagamento, lá na outra porta do balcão. Serviço de mesa, só nos 46 lugares da esplanada, taxado a 50 cêntimos por artigo. Cá dentro, tíbia e um café ficam-me por 2,80€ e sete minutos de espera.

Na mesa junto à entrada fico com uma perspetiva de mirone em Albufeira. Contemplo toda a sala aprumada com uma elegância de antanho, imagens da cidade nos anos de 50, 60, tempos áureos da antiga casa, a decoração entre verde escuro, pastel e dourado, as cadeiras de traça antiga, os sofás em pele, as mesas em lioz. É como um clássico instantâneo, tudo com a sofisticação do antigamente mas sem a patine do tempo. Nas costas das fardas dos empregados, reconheço o velho logo da Suíça, que Almada Negreiros um dia desenhou nas costas de um guardanapo — não é bem igual, suponho que por direitos de autor, mas uma reinterpretação (ups!).

Lá adiante, um painel colorido de azulejos da Viúva Lamego representa os principais monumentos da cidade e serve de cenário para Instagram. Lá fora, na esplanada, a estátua de um engraxador que inclui uma cadeira vazia para quem ali quiser posar e que também convida ao hashtag.

Mas o que me prende a atenção é mesmo a transumância junto ao balcão. São agora 11h30 e já topo alguns espécimes autóctones, talvez dois por cada dez clientes, o que significa que a probabilidade de alguém perceber os meus destrambelhos já é tanta quanto em qualquer pastelaria no Luxemburgo. É gente grisalha e bem posta, que evoca memórias do velho quarteirão que separa a Figueira e o Rossio, onde em breve vai nascer um mastodôntico pronto-a-vestir. Discutem sobre se o verdadeiro Duchesse deve ou não ser coroado com fios de ovos, questão sobre a qual declaro a minha neutralidade suíça, mas parecem genuinamente felizes por reviver as horas açucaradas de outro tempo. É o mercado da nostalgia, que a marca Suíça abertamente quer capitalizar. Nada contra. Também já não vou para novo e eis-me aqui, felicíssimo por entregar aos prazer com esta tíbia de outrora.

O preceito

Ao meu lado, um grupo de senhoras americanas de porte generoso abocanham russos com ganas de quem quer recuperar o Donbass. Não gastam mais de três minutos para anexar aqueles 30 centímetros quadrados, trucidando a massa folhada delicada e levemente estaladiça que ensanduicha uma nata gulosa com dois dedos de altura. Not very sweet, lamenta uma delas, enquanto se desforra num batido de chocolate. Uma maravilha, rosno eu, que aproveitei um alívio momentâneo na fila da caixa para experimentar também esta joia da coleção. E o que vos posso dizer é que é preciso arte para produzir uma lambarice deste calibre com esta delicadeza.

Por tudo isto vos digo que, na minha imodesta opinião, a nova Suíça faz justiça a um história lisboeta que começou a ser escrita no tempo em que ainda se escrevia assucar. Se está tomada por turistas, não me parece feita a pensar só neles. Não finge ser o que não é, nem cai nos exageros coreográficos de outras casas do mesmo grupo (na Fábrica da Nata dos Restauradores, há um teleférico fantasma que transporta bandejas de pastéis para nenhures). Além do mais, é justo reconhecer que 1.90€ por este nível de confeitaria não é ofensivo para os indígenas.

Em suma, é uma boa pastelaria de produção própria, com tudo a preceito, e uma boa notícia para uma Baixa cheia de conceitos instantâneos que não valem uma tíbia.

Como diria o outro, hei-de voltar. Posso demorar, mas volto.

Arnaldo Valente é homem de palavra e só não dá a cara porque precisa dela para fazer a barba. Tende pouco para as tendências, não é muito sensível às sensibilidades, é fascinado por coisas sem importância e insiste em brincar com coisas sérias. Só fala do que experimenta, embora não possa falar de tudo o que já experimentou.