Chega ao fim o monumento de Riad Sattouf. O sexto e último volume de O árabe do futuro acaba de chegar a Portugal, com tradução de Helena Guimarães e edição da Teorema. É difícil conjugar-se tão bem aspecto gráfico com ligeireza e densidade da narrativa em simultâneo, assim como capacidade de dar intimidade das personagens e contexto. Numa mesma página, Riad Sattouf consegue o que é tão difícil que parece impossível: mostrar um estado de alma e o estado de um país ao mesmo tempo.

Filho de mãe francesa e pai sírio de origem sunita, Sattouf pegou na própria vida e transformou-a em arte, pondo em frente ao leitor o que se vai abrindo como problema intransponível: as culturas são antagónicas, mas a família existe como unidade orgânica. As crianças são filhas do mesmo pai e da mesma mãe, mas o lugar de origem de cada um vai moldando tudo e afastando o outro – às vezes, afastando o pai ou a mãe ou o irmão. Por isso, cada personagem, sendo ela mesma, é para quem lê mais do que ela mesma. Cada uma é produto não só do seu tempo, mas também do seu lugar, mostrando a cultura como ambiente que define e encaminha. Nos capítulos passados na Síria, em volumes anteriores, isto é particularmente evidente para os leitores ocidentais, uma vez que tenderão a olhar para os capítulos cuja acção se passa no Ocidente como fazendo parte de uma cultura neutra, sem o olhar do outro. Quem lê vê o pai, mas vê também a Síria; vê a mãe, mas também França. E, com estas personagens multi-dimensionais, bem construídas, intensas, dramáticas, vivas, Riad mostra a política a partir da sua casa ao mesmo tempo que nos abre a porta para lá estarmos.

Lidos os seis volumes, a personagem de Abdel-Razak, o pai, é formidável. Difícil será encontrar na literatura personagem tão perdida e encontrada ao mesmo tempo. Voando entre duas culturas, adapta-se àquela em que se insere. Ora, estando a família em movimento, vemos Abdel-Razak a mudar de convicções, e a afirmar as novas como únicas, cimentadas, intransponíveis. É maravilhoso porque é a vida de todos os dias. E é maravilhoso porque apresenta, de cada vez, a sua crença como um valor absoluto, inquestionável, e para lá tenta levar os outros. A parte do fanatismo religioso é o elemento mais marcante, em parte porque se vê a relativa rapidez com que lá entra, ou reentra, depois de ter tido outra vida.


Título: “O árabe do futuro 6”
Autor: Riad Sattouf
Tradução: Helena Guimarães
Editora: Teorema
Páginas: 184

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Ao longo da série, acompanhamos a família entre Paris (Abdel-Radak fizera lá um mestrado com uma bolsa do governo francês), a Líbia de Kadafi e a Síria de Hafez Al-Assad. Como, ainda por cima, se tratam de países em que os governos metem mesmo as mãos nas casas, o peso histórico de cada decisão, de cada pedra do dia-a-dia, é inegável. Ao mesmo tempo, o peso das identidades também vai fazendo o seu caminho: tendo estado em França, é ao ir para a Líbia que Abdel-Razak começa a contrapor a identidade “árabe” às outras. Daí a aliá-la ao Islão são dois passos, assim como a fazer com que as crianças repitam o Al-Corão mesmo que não o compreendam. Mais do que a figura do próprio Riad, importa a figura deste pai. É ele o eixo, o que permite a novela gráfica (o romance gráfico, vá).

Neste último volume, já a família se mudou para França. Abdel-Razak ficou na Síria. Indo a França, rapta o filho à mãe. Todo o último volume é esta ausência, de um e de outro. O pai vai ficando uma figura mais distante, que nem por isso deixa de ser sombra. E o irmão parece uma figura que se intui que vai ser recuperada. O problema é que, para ele, também os anos passam, e a Síria faz-se seu país. O irmão e a mãe, volvida a vida, já pouco lhe dizem. E, à medida que Riad vai obcecando com o pai, mesmo que ao muito longe, o leitor vai vendo a mãe a desfazer-se, já impotente. Já adulto, Riad ainda é inseguro, parecendo meio perdido interiormente. Há um conflito de identidades, e sobretudo traumas do passado, uma não-pertença constante. É que se na Síria era “o judeu” (ele que nem sabia o que era um judeu), em França é o árabe. E pelo meio vai seguindo o seu caminho nas artes plásticas, longe de imaginar que, um dia, seria a sua própria vida, essa que até lhe parece coisa pouca, a sustentar o monumento erguido quadrinho a quadrinho.

Ao mesmo tempo, o autor ilustra a forma com a ausência se transforma numa presença, e numa que macula todos os lugares e todos os momentos. É que, mesmo ao longe, passados anos e anos, o pai ainda lhe aparece na cabeça, quase como voz, quase como sombra, quase exclusivamente como contraponto: aquela voz a dizer-lhe que não é assim, aquela expressão a insinuar-lhe que devia ser de outra maneira. A sombra, o ao-longe, aumenta-lhe a insegurança, e apresenta ao leitor a vida como coisa por concluir. É que quem lê sabe que o que tem em mãos não é só um livro, uma história que terá forçosamente um fim, talvez feliz. É a vida de Riad Sattouf, e a vida, mais do que os livros, tende a ser imprevisível. Por isso, ao seguirmos a obsessão de Riad e o luto da mãe, e ao julgarmos que, no meio da loucura do pai, terá de sobreviver um final feliz, esperamos que anos de espera – de luta – consigam trazer alguma luz. Lá chega, talvez demasiado tarde, e talvez por isso não chegue a iluminar nada. A resolução da trama sabe, por isso, a coisa pouca – não do ponto de vista da formulação literária, mas do ponto de vista da redenção emocional. Parece que, em cima de vazio, Riad descreve mais vazio. O que fora esperado tanto tempo, e com tanta força, trouxe outro caminho, e uma resposta que só podia ser aquela: a vida, do outro lado, não cristalizara, e a criança raptada já era mais do que isso. Já era o homem que crescera noutra cultura e atara os seus laços.

Acabar a leitura da série é, por isso, um abanão. Riad perde-se e o leitor perde-se com ele. Riad não sente por aí além, e nós sentimos a mais por isso. Nos capítulos cuja acção se passava em França, podíamos ver Riad com a cabeça à tona, ido de férias da Síria. Volvidos os anos, parece que já nem em França respira sem o peso emocional que o pai deixou para trás.

Finda a leitura, levou-se uma coça. Em seis volumes, estão demasiadas coisas, e todas entrelaçadas. Temos a França de Miterrand, claro, mas temos, talvez sobretudo, a Síria entre 1978 e 2011. E temos o poderoso embate entre as duas, principalmente por se fazer no território que devia ser de paz e foi de guerra – a família. Fechado o livro, nem se percebe bem se se leu sobre os conflitos culturais ou emocionais de Riad. Mas, lá se conclui, foi mesmo sobre os segundos por causa dos primeiros.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia