A jogar completavam-se, fora de campo eram quase o prolongamento um do outro. Em qualquer almoço ou jantar, tinham de andar sempre ali por perto mesmo que um gostasse sobretudo de falar de futebol depois do final da carreira e o outro fizesse de tudo para não falar de futebol depois do final da carreira. Qualquer que fosse o ângulo, o clube ou o tema em questão, era disso que Manuel Fernandes gostava de falar: futebol. Só mesmo em outubro de 2019, quando perdeu o “irmão” Rui Jordão, pediu para não dizer nada. Estava muito combalido, abalado, triste, em parte vazio, sendo certo que dali só sairiam elogios e mais elogios. A partir de agora, a dupla que fez história ao serviço do Sporting, da Seleção e do futebol em geral vai voltar a juntar-se. Manuel Fernandes, um dos maiores símbolos do clube verde e branco, morreu aos 73 anos.

Dos 7-1 ao Benfica ao sonho da mãe. A vida e carreira do leão Manuel Fernandes

O avançado de Sarilhos Pequenos foi sempre um daqueles fenómenos que de tão raros se tornou cada vez mais precioso. Apesar de desde miúdo acompanhar o Sporting através da rádio (muitas vezes às escondidas da mãe, quando eram os encontros europeus a meio da semana à noite), algo natural numa família onde era tudo sportinguista, o caminho até chegar a atleta do “seu” clube foi improvável. Primeiro, porque começou a jogar tarde, quando já tinha 16 anos, altura em que foi fazer testes ao Sarilhense. Depois, porque ficou mas saltou para a equipa secundária já de seniores num ápice. De seguida, porque chamou a atenção de outros olheiros, rumando então à CUF. Ao longo de seis temporadas, a equipa do Barreiro tornou-se uma das grandes revelações do Campeonato, tendo mesmo atingido o feito histórico de chegar à Taça UEFA.

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Em 1975, já com 24 anos, podia escolher o próximo destino. Mais tarde, já campeão e internacional de peso, ainda tremeu com uma proposta do Benfica que tinha tantos zeros num cheque que parecia “irrecusável”. Aí, tinha contratos de Sporting, FC Porto e Belenenses para assinar. Como aconteceria por mais do que uma vez, deixou-se levar pela parte emocional em detrimento das condições financeiras e, quase sem pensar, optou pelos verde e brancos. A mãe tinha razão – um dia entraria mesmo em Alvalade como jogador dos leões. E esse dia seria mais do que um dia, tornando-se num ápice em 12 anos que ficariam para a história.

“Campeonatos há muitos, mas um jogo como aquele dos 7-1 há só um”

A tarefa não era propriamente fácil ou não tivesse passado por aquela posição ‘9’ um senhor chamado Héctor Yazalde. O Chirola, como também era conhecido, teve quatro anos fantásticos em Alvalade, em especial em 1973/74 quando conquistou a Bota de Ouro com um total de 46 golos no Campeonato (recebendo um Toyota além do galardão, carro que vendeu para distribuir o dinheiro por todos os companheiros). Pelos golos, pela qualidade, pelo carisma e pelo peso no balneário, Manel tinha a pior das sucessões. No entanto, acabaria por tornar-se um símbolo ainda maior da equipa de Alvalade com números só batidos por Peyroteo.

Manuel Fernandes emociona-se a falar sobre o Sporting. “É a primeira vez que estou a ver o meu clube ir por aí abaixo”

A estreia com um hat-trick frente ao Académico de Coimbra prometeu, os 12 anos confirmaram: Manuel Fernandes fez um total de 441 jogos oficiais pelos leões com um total de 260 golos, que lhe valeu o registo de segundo melhor marcador de sempre do clube apenas trás do Violino. Em termos coletivos, e a partir de 1977 com o “irmão” Rui Jordão na frente a par de outros nomes que foram passando pelo Sporting na frente como António Oliveira, Salif Keita, Lito ou Ralph Meade, ganhou dois Campeonatos, duas Taças de Portugal e uma Supertaça, sendo que em 1985/86 sagrou-se o melhor marcador da Liga com um total de 30 golos. Em 1987, com a chegada de Keith Burkinshaw ao comando técnico e já sem João Rocha na presidência, acabou por ser dispensado com 36 anos mas ainda fez uma época no V. Setúbal com Malcolm Allison… e Jordão.

Manuel Fernandes, o eterno 9 do Sporting, foi homenageado em Alvalade antes do apito inicial do déri com o Benfica em 2022/23

De forma inevitável, a carreira de Manuel Fernandes nos leões ficou marcada pela goleada por 7-1 ao rival Benfica em dezembro de 1986, num dérbi em que esteve para sair quando o resultado ia nos 5-1 com um bis mas terminou a completar o póquer. Tudo nesse encontro era recordado até ao mais ínfimo pormenor em qualquer tertúlia de amigos, sendo que entre essa noite memorável e a conquista do primeiro Campeonato em 1980 após um triunfo frente à U. Leiria há uma partida que teve sempre como a mais marcante de toda a carreira: o dia em que vestiu pela primeira vez a camisola do seu clube de coração. Ao serviço da Seleção, e numa fase em que eram muitas as opções de ataque, marcou nove golos em 31 jogos mas nunca chegou a ir a uma fase final nem do Campeonato da Europa (1984) nem de Mundiais (1986).

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Logo após terminar a carreira, Manuel Fernandes assumiu o cargo de treinador dos sadinos, “herdando” a equipa de Malcolm Allison e conseguindo aproveitar da melhor forma um avançado que ainda marcou 11 golos em 37 partidas: Jordão. Passou depois por equipas como o Estrela da Amadora, o Santa Clara, a Ovarense ou o Tirsense, sendo que teve noutros três conjuntos os seus pontos altos: Campomaiorense, Santa Clara e U. Leiria, com quem conseguiu subir à Primeira Liga (no caso dos açorianos vindo da 2.ª Divisão B). Também nessa função esteve duas vezes no Sporting, primeiro como adjunto de Bobby Robson entre 1992 e final de 1993 e mais tarde como principal após a saída de Augusto Inácio em 2000. Foi na última passagem que conquistou uma Supertaça. Deixou os bancos em 2011, tendo como último clube o V. Setúbal, ficando desde essa altura ligado ao futebol como dirigente desportivo ou como comentador. O filho, Tiago, foi campeão de juniores pelos leões e chegou a assumir o comando da equipa A como interino.

Nos últimos tempos, o Sporting foi fazendo várias homenagens ao jogador que se encontrava hospitalizado, das camisolas 9 com que a equipa entrou no Estádio do Dragão à entrega da taça de campeão nacional a Manuel Fernandes pelo presidente Frederico Varandas e pelo avançado Viktor Gyökeres. E havia sempre a esperança de que a situação pudesse melhorar, que pudesse voltar a casa, que pudesse viver para receber todos os gestos que amigos e adeptos queriam fazer. Partiu esta quinta-feira perdendo um daqueles jogos que não podia ganhar mas com o último desejo realizado: ver o seu Sporting novamente a ganhar o título.