Esqueça as revistas, os filmes e os podcasts. Há uma nova tendência para passar o tempo durante as viagens de avião que até pode ser considerada uma forma de meditação. Chama-se “raw dogging” e requer que não faça nada (ou quase nada) nesse voo. Pode olhar para o ecrã que as companhias disponibilizam para ir acompanhando o percurso do voo em tempo real ou ir espreitando pela janela. Mas tem de se abster de todas as outras distrações — e até da comida e da bebida.

A trend iniciou-se na plataforma Tik Tok e rapidamente se espalhou pela rede social com vídeos de pessoas a competirem para ver quem aguenta mais tempo com o menor número de distrações. Viralizou agora, mas este “detox” não é novo. De acordo com o site especializado em temas de lifestyle e viagens Live and Let’s fly, já alguns monges e freiras recorriam a esta prática para “limpar” a mente e focarem-se apenas na sua existência e nos seus pensamentos.

Também Michael Ceely, terapeuta mental da Califórnia, concorda com o poder zen e rejuvenescedor desta tendência, após ele próprio a ter experimentado numa viagem. Em declarações à norte-americana CNN, explicou que estava farto da rotina habitual de ver um filme ou ler um livro no avião e, por isso, decidiu, simplesmente, “ficar a olhar para o vazio e usá-lo como uma meditação zen“.

Especializado mais na terapia a homens, Ceely admite que o género masculino é mais avesso a “adotar a meditação, a atenção plena ou qualquer outra coisa que possa ser considerada ‘espiritual'”. Mas, sustentou o especialista, um desafio não deixa de ser um desafio, o que pode explicar a aderência da comunidade masculina — superior ao que seria expectável.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Os homens gostam de desafios. É com certeza mais socialmente aceitável os homens gabarem-se de algo assim: gosto de um desafio, deixa-me ver se consigo ultrapassar isto. Assim torna-se uma prática ‘detox’  marcada com a linguagem masculina”, declarou ao site da estação televisiva norte-americana.

Tal acabou por suceder com o DJ britânico Oiwudini, que se gabou de ter feito um voo de sete horas sem auscultadores, sem dormir ou sem qualquer outro tipo de conforto, num vídeo que alcançou os 1,3 milhões de likes. Pode ainda ler-se na descrição: “Incrível. O poder da minha mente não tem limites”.

@oiwudini ????????‍♂️ #fyp ♬ The Only Thing They Fear Is You - De8ed

As mulheres também aderiram à moda e documentaram nas redes sociais as experiências, como foi o caso da tiktoker Veronica Skaia que, num dos seus vídeos que atingiu quase 10 mil comentários, referiu que “ficar a olhar para o meu abismo [no sentido de profundeza] e a ver o pequeno avião no GPS” passou a ser a sua forma favorita de viajar.

@veronica.skaia

There’s no time for silly distractions when you’re an intellectual like me (i forgot to pack my headpgones)

♬ original sound - SpongeBob background music

Mas como em tudo na vida, há sempre experiências negativas. O jornalista Mike Bedigan foi exemplo disso. Num texto escrito pelo próprio no jornal britânico The Independent, Mike descreveu a sua experiência de “raw dogging” num voo de Los Angeles a Nova Iorque onde, sem música, sem livros, nem filmes, passou cinco horas a olhar para o ecrã do percurso.

No início do relato, o jornalista realçou que, ao descolar e ao olhar para a vista “deslumbrante”, chegou a repensar nas suas capacidades meditativas e que afinal poderia acabar por ser uma experiência bem sucedida. No entanto, durante o voo esse sentimento foi-se desvanecendo. Começou por invejar o seu “vizinho do lado” que estava a ver um filme no ecrã — algo que Mike estava impedido de fazer. Depois, a paisagem rapidamente mudou de cor para algo que descreve como “areia, pedras, pedras e areia”, tornando-se “aborrecida”. A este cenário juntou-se o facto de não poder comer nem beber — que esclareceu não compreender visto que são necessidades básicas. Por fim, ao aterrar afirmou sentir-se “incrivelmente aliviado” quando pegou nos auscultadores e finalmente pôde ouvir música.

No artigo, o repórter considerou ainda que o desafio pareceu “a última interação de masculinidade tóxica, escondida mais uma vez por detrás da fachada da disciplina mental ou física e dos benefícios” e que apesar de reconhecer que algum tempo para pensar pode ser “uma bênção”, não percebeu o porquê de se recusar um bom “gin tónico grátis” e um “pequeno petisco” a ver um filme que não se quis pagar para ver nos cinemas.

A razão de se chamar “raw dogging”

Por definição, “rawdogging” representa o ato de ter relações sexuais não protegidas — o que pode gerar uma certa ambiguidade sobre o ‘porquê’ do nome deste desafio. Em língua corrente, estar “raw dogged” também pode significar a realização de uma ação sem algo que à partida seria essencial para tal, ficando-se “desprotegido” durante a mesma. É neste caso que esta trend se insere. Normalmente, no decorrer das longas horas de um voo a maioria das pessoas tem o hábito de ou pegar num livro ou ver um filme ou até jogar um jogo — sobretudo se for uma viagem familiar —  e, claro, bebida e comida não costumam faltar. Já o objetivo do desafio é exatamente o contrário de uma rotina “normal” de uma viagem: aguentar o máximo de tempo possível sem qualquer tipo de divertimento ou comodidades. Assim, pode dizer-se que fazer “raw dogging” é ficar completamente “desprotegido” no avião.

Uma questão que ainda impera é quem, afinal, se lembrou de associar este nome à nova trend. Apesar da origem não ser clara, alguns blogs alegam que a associação surgiu há dois anos — antes do desafio viralizar nas redes sociais. Segundo o blog AirPlaneMode da jornalista canadiana Liz Plank, tudo começou num tweet na antiga rede social Twitter (atual X) onde uma mulher, após uma viagem de dez horas, reagiu ao ‘passatempo’ do seu vizinho do lado.

“O homem que estava ao meu lado no avião ‘raw dogged’ o voo inteiro … entrou num voo de dez horas para a Europa de calças de ganga, sem auscultadores, sem livro, sem almofada para o pescoço, literalmente só com um copo de café sem tampa, tipo o ‘senhor, está bem?’ “, pode ler-se na publicação.

Desde então, e com o aumento da popularidade desta tendência, as pessoas alegadamente revisitaram o tweet e nomearam-na de “raw dogging”. A publicação já ultrapassou os 300 mil gostos e os 14 mil reposts.