A população da Guiné-Bissau vai ter, pela primeira vez, uma linha telefónica de socorro e aconselhamento, que começa a atender chamadas na segunda-feira relacionadas com saúde, casos de polícia ou socorro.
A iniciativa é da Associação Vida, uma Organização Não Governamental (ONG) portuguesa que, com o apoio de outros parceiros, instalou o equipamento necessário e batizou o serviço de “Linha Saúde 24”.
Na verdade são dois números disponibilizados, o 1919 e o 2020, destinados a cada uma das duas operadoras móveis do país, para garantir que a população pode ligar de forma gratuita.
O princípio é o mesmo da linha existente em Portugal e foi criada para ajudar a população, mas adaptada à realidade de um país onde os cidadãos não poderão esperar sempre a necessária resposta dos serviços de saúde, como explicou à Lusa o coordenador, Crister Ocadaque.
Médico de profissão, Crister conhece “os problemas muito sérios dentro das estruturas de saúde” da Guiné-Bissau e as dificuldades da população no acesso à informação e consequentemente no acesso ao acompanhamento médico.
Nesse contexto, a linha de saúde “vem dar um apoio, vai funcionar 24 sobre 24 horas, vai ter uma equipa de 13 operadores, enfermeiros, médicos, e uma psicóloga”, para receberem a ligação e tentar encontrar uma solução.
A linha não vai deslocar uma ambulância, que não há, para casa das pessoas, mas vai ajudar a fazer uma articulação entre diferentes parceiros, a nível dos hospitais de referência, tanto na capital como nas regiões do país”, explica.
A saúde será o ponto fulcral deste serviço que se destina também a receber e encaminhar outro tipo de solicitações.
“Imagine que acontece um naufrágio, nesse caso, nós vamos acionar a equipa da Marinha para o processo de salvamento. Também a questão da violência e o estupro de menores, em articulação com a Polícia Judiciária”, exemplifica.
A vantagem deste serviço é a articulação entre diferentes entidades, como explicou, e a expetativa é de que possa ajudar a reunir dados para a definição de políticas públicas.
Nos relatórios, que vão ser feitos periodicamente, constarão o reporte de nascimentos e óbitos dentro das comunidades de todo o país, dados que podem ajudar a esclarecer causas de morte num sistema onde não são feitas autópsias.
Da mesma forma, ao pedir a identificação de quem liga, a linha espera contribuir para um cadastro das pessoas sem bilhete de identidade, num país onde se estima que mais de metade das crianças não tem registo de nascimento.
A ideia deste projeto nasceu da linha telefónica criada para a pandemia de Covid-19 e que se destinava apenas ao seguimento dos casos positivos.
Quando o projeto acabou, conta Crister, a organização começou a pensar na criação de uma nova estrutura porque as ligações que recebiam na época não eram apenas relacionadas com a Covid-19.
A linha Saúde 24 da Guiné-Bissau disponibiliza, também, um psicólogo, a pensar, sobretudo, nos casos de VIH e tuberculose, doenças estigmatizadas pela sociedade.
A psicóloga de serviço, Delmira Mendes Correia, realça que o serviço “vai ser importante porque devido às questões culturais a população não tem muito conhecimento sobre a psicologia e com essa linha vai ter acesso e poder pedir ajuda em caso de necessidade”.
O projeto da Associação Vida é financiado maioritariamente pelo instituto Camões, de Portugal, e ainda pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Foi também desenvolvida em Portugal a infraestrutura tecnológica para o funcionamento da linha, construída de raiz pelo INESC TEC – Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (Porto) e Universidade do Minho, como disse à Lusa o representante João Marco Silva.
O sistema foi pensado para as necessidades locais e para os serviços que vão ser prestados, com “uma solução sem nenhum custo de licenciamento de software”.
Os equipamentos utilizados, como a estação de atendimento, “são de baixo consumo de energia, o que ajuda bastante nos períodos em que há falhas de distribuição e o sistema precisa de ser alimentado por bateria”, acrescentou.
A Lusa visitou as instalações onde funcionará esta linha encarada como “um novo desafio” por quem ali acabou de receber formação e vai atender as chamadas, como o enfermeiro Siuna Sanguere.
Este profissional trabalha num centro de saúde local onde surgem dificuldades como a falta de medicamentos e vê na linha um serviço para informar quem precisa da disponibilidade ou alternativa.
Uma vantagem apontada por outro operador, Ocante Adolfo Dapó, é que, mesmo estando num lugar distante, as pessoas podem ligar a pedir socorro ou aconselhamento.
É um projeto novo que a população deve saber usar para o próprio bem”, vincou.
Alfadju Gomes Ianga é o representante do Governo na área da Saúde neste projeto e destaca a importância deste atendimento num país com falta de “boas estradas” e acessos, nomeadamente daqueles que vivem nas ilhas.
Uma das falhas que reconhece no funcionamento do sistema de saúde é “a conexão entre a prontidão e disponibilidade” e acredita que agora fica “mais completa”.
“Se houver uma evacuação de Gabu para Bissau, o Simão Mendes (hospital) já sabe que vai receber o paciente e, se não tiver espaço, podemos agilizar para ir para outro hospital”, concretiza.
O serviço, aponta, permitirá também identificar áreas prioritárias, mas será preciso depois que os responsáveis políticos se sentem com os técnicos para falarem de soluções.
Se não conseguirmos organizar-nos, todos nós vamos ser vítimas do sistema, ninguém vai escapar disso”, alertou.
Portugueses ajudam a dar primeiros passos da emergência médica na Guiné-Bissau
Na Guiné-Bissau há serviços de saúde em que o único apoio à população é a boa vontade de quem está a receber pela primeira vez formação para emergências num país onde falta o básico na área da saúde.
“Aprender para Salvar” é o lema de um novo projeto da Organização Não Governamental (ONG) Together Internacional Portugal que está a ajudar a dar os primeiros passos na emergência médica com a abertura de uma escola e formação a entidades nacionais e internacionais.
Benedita Encussem nunca tinha recebido uma formação como esta e depois do que aprendeu com os voluntários da Together garante à Lusa que vai fazer mudanças no centro de saúde de Bindouro, na zona de Mansoa, onde trabalha praticamente sozinha.
Agora já sabe como dar os primeiros socorros numa comunidade longe da capital, Bissau, onde têm “muitas faltas” na saúde e onde “é difícil”, mas tenta “fazer o máximo para corresponder às necessidades da população”.
Nas regiões, como conta à Lusa, “o sistema é ainda bastante fraco e por isso haver um contacto bem treinado, pelo menos para os primeiros socorros, é uma capacidade importante para o país”.
O único apoio para a comunidade de Bindouro descreve que os “maiores problemas” com que se depara no dia a dia são “diarreias, vómitos, conjuntivites, otites” e agradece a oportunidade de ter participado nesta formação.
A Associação Together formou nas últimas semanas profissionais e também funcionários de organizações como a cooperação portuguesa ou a união Europeia.
Durante estas semanas foram formadas cerca de 80 pessoas e, destas, 14 técnicos de saúde que vão dar continuidade à formação na nova escola já em funcionamento.
Trata-se do primeiro centro de formação em emergência médica e catástrofe da Guiné-Bissau, segundo o presidente da Together Portugal, Ricardo Bordón, um médico que trabalha há 28 anos no INEM e ajudou a instalar a rede de emergência médica em Portugal.
Habituado a trabalhar em cenários de catástrofe pelo mundo, o médico chegou à Guiné-Bissau com a associação para um projeto na área da diabetes, uma doença com prevalência elevada no país africano.
Notou a ausência de preparação local para respostas urgentes e decidiu avançar com o projeto para ajudar a dar os primeiros passos na emergência médica.
Na nova escola vai ser ministrado um curso de suporte imediato de vida e está a ser preparada uma ambulância-escola conjuntamente com o serviço nacional de bombeiros e proteção civil e o Ministério da Saúde guineenses.
A escola tem cursos de emergência médica em catástrofe, gestão de crises complexas, gestão de eventos e “nos cursos são escolhidos os melhores para continuarem como formadores”.
A nossa finalidade é partilhar aquilo que sabemos, reforçar a capacidade da Guiné-Bissau, apoiar estas pessoas, que são boas, que continuem na área da emergência médica, que não existe na Guiné-Bissau”.
Segundo o médico, é preciso sobretudo “dar ao povo da Guiné-Bissau as ferramentas todas para que tenha um bom sistema de emergência médica, não só para os guineenses, mas também para que os turistas, para os portugueses, para que os estrangeiros se sintam seguros quando chegam à Guiné com um sistema capaz de socorrê-los no caso de uma situação grave de emergência”.
A jovem médica portuguesa Joana Silva é uma das voluntárias da Together que deu a primeira formação na Guiné-Bissau, onde teve oportunidade de contactar com algumas realidades locais diferentes daquelas com que trabalha em Portugal.
É muito duro, mas é muito importante nós percebermos, no meu caso que exerço em Portugal, o que temos de bom e perceber e contactar com situações no hospital que se estivessem em Portugal se salvavam. É muito duro e por isso é importante ter esse contacto“, diz.
O projeto da emergência médica é apoiado pela Cooperação Portuguesa e pela União Europeia, que quiseram dar formação também aos respetivos colaboradores na Guiné-Bissau, entre eles Elisabete Silva, que realçou à Lusa a importância das manobras que aprendeu.
É muito útil. Eu sinto que já poderei fazer alguma coisa”, considera, com o colega Ivo Baldé a evidenciar o novo estatuto que a formação lhe confere: “ela é uma médica comunitária”.
Os mais próximos são quem apoia nas comunidades da Guiné-Bissau “onde as pessoas não vão para o hospital, não procuram os médicos”, segundo Ivo Baldé, que agora anda sempre com uma máscara para, se for necessário, fazer manobras de reanimação.
Agora vou ser um agente comunitário, isso quer dizer que na minha comunidade, no meu bairro onde eu estou poderei servir como uma pessoa de recurso nessa situação”, refere, salientando que as manobras que aprendeu “podem fazer a diferença”.
“Eu já assisti muitas vezes a crianças a falecerem por causa de mínimos cuidados que nós não sabíamos, agora com essa formação já estamos à altura de apoiar, de ajudar as pessoas a livrarem-se desse mal”, afirma.
Também o embaixador da União Europeia na Guiné-Bissau, Artis Bertulis, fez três dias de formação e de treino para adquirir capacidades pessoais porque entende que “em caso de pequenas surpresas e acidentes, é muito importante estar treinado para estas situações”.
O embaixador de Portugal em Bissau, Miguel Cruz Silvestre, fez a formação e explica à Lusa o apoio da Cooperação Portuguesa a este projeto, financiado pelo instituto Camões.
A rubrica saúde, trabalho e assuntos sociais absorveu um quarto dos mais de 80% executados dos 60 milhões de euros disponibilizados por Portugal à Guiné-Bissau no Programa Estratégico e Cooperação em vigor desde 2021 até 2025.
Segundo o diplomata, Portugal aposta “muito na área profissional porque é através da capacitação, quer na formação, quer na prestação de cuidados de saúde“, que se alcançará os objetivos assentes na conjugação de vontades dos dois países, envolvendo associações da sociedade civil e outras entidades.