Mais explicações. A maior parte dos partidos não ficou esclarecida com a entrevista de Lucília Gago à RTP, a primeira do seu mandato como procuradora-geral da República, e continua, por isso, a considerar que a sua audição no Parlamento — já aprovada, mas ainda por agendar — continua a fazer sentido, ou até que faz agora mais sentido do que nunca.

Por entre vários ataques à sua falta de “autocrítica” ou à tese de que existe uma campanha “orquestrada” para atacar o Ministério Público, ouviu-se também, da parte do Chega e da Iniciativa Liberal, uma garantia: a entrevista veio acabar com a ideia de que o Governo de António Costa caiu às mãos de um “golpe de Estado”. Já PS e PSD optaram por ficar em silêncio, com os socialistas a optarem por aguardar até à audição parlamentar, que pode acontecer só em setembro, para fazer comentários.

Lucília Gago nas entrelinhas. Os ataques a Marcelo e à ministra da Justiça, a comparação entre Costa e Sánchez e a “campanha orquestrada”

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No Parlamento, o líder do Chega pegou nas explicações de Lucília Gago sobre o famoso parágrafo que rematava o comunicado da procuradoria sobre a Operação Influencer, e que se referia a António Costa, para garantir que “finalmente caiu a ideia” de que existia alguma intenção política por trás dessa referência: o Ministério Público, defendeu Lucília Gago e reafirmou André Ventura, tinha mesmo de “abrir um inquérito”, e uma vez que o fizesse “era o que mais faltava não o comunicar ao país, dando a entender que estava a proteger uma pessoa”. A decisão de se demitir foi, por isso, pessoal e política e partiu do próprio Costa, frisou Ventura.

O outro ponto que o líder do Chega quis frisar, e que condiz com as acusações recorrentes que tem feito aos partidos do centro de se juntarem para se “protegerem” no que toca a investigações judiciais, é que a Justiça se tem sentido “condicionada” e que os políticos devem “saber tirar consequências” disso mesmo. Ventura acredita que há mesmo uma campanha para “dar a ideia de uma nova PIDE que persegue políticos” — e “os tempos que aí vêm podem ser perigosos”, antecipou, dizendo esperar para ver quem é escolhido para substituir a PGR ou dirigir os órgãos criminais.

Na Iniciativa Liberal também vingou a ideia de que se acabou a “teoria do golpe de Estado”, uma vez que, considerou Rui Rocha, a procuradora apresentou “motivos razoáveis” para ter escrito o parágrafo e que António Costa, ainda com a investigação em curso, “quis ir para o Conselho Europeu” — o que, na visão da IL, prova que a opção de se demitir foi exclusivamente do primeiro-ministro.

Ainda assim, a IL também deixou críticas à atuação do Ministério Público e à procuradora, por “não trazer nenhuma explicação” sobre abusos no recurso às escutas ou a detenções por tempo prolongado: “A IL quer um MP que atua, mas não quer cidadãos perseguidos pela Justiça”, argumenta. Para os liberais, a procuradora demorou “tempo demais” a dar esta entrevista e estas explicações; agora, é tempo de que a política e a Justiça entrem numa nova fase, menos tensa e de “cooperação e respeito mútuo”, apela.

Ainda à direita, o CDS considerou, pela voz de Paulo Núncio, muito importante esclarecer questões que ficaram “em aberto”, incluindo quem são as pessoas que terão organizado uma “campanha orquestrada” contra o Ministério Público — uma questão, sugeriu, que Gago poderá esclarecer na sua audição parlamentar. E rematou com mais um aviso: “É muito importante que MP atue independentemente de quem é a pessoa. Tem de ter o mesmo tratamento. Os políticos não podem ter um tratamento privilegiado”.

Esquerda “lamenta postura” e falta de “autocrítica” da PGR

À esquerda, as reações foram sobretudo de crítica à procuradora. Pelo Bloco de Esquerda, na primeira reação, o líder parlamentar, Fabian Figueiredo, disse “lamentar a postura” de pouca transparência de Lucília Gago, defendendo que quem ocupa um cargo público tem esse “dever” e deve estar mais disponível para o diálogo, incluindo com os órgãos de comunicação social. Por outro lado, o partido, que juntamente com o PAN conseguiu fazer aprovar a audição da PGR a pretexto da apresentação do relatório de atividades do Ministério Público, lamentou que o documento não esteja pronto (o prazo era até maio), prevendo que, assim sendo, a audição só aconteça já em setembro.

Para o Bloco, ficaram por esclarecer e resolver preocupações que vão da violação do segredo de Justiça ao uso abusivo e “inaceitável” de escutas, que faz lembrar “estados policiais do passado”. E ficou um aviso: o debate público sobre a atuação do MP não pode ser entendido como um “condicionamento” e as acusações sobre a tal campanha orquestrada devem ficar esclarecidas: “Essa frase não pode ficar no vazio. Não quero acreditar que faça uma declaração dessas sem base. Se optar por ficar em silêncio, na audição perguntaremos quem são os responsáveis”.

Mais tarde, a coordenadora do BE advertiu que o Ministério Público não está acima da crítica, tal como os outros poderes soberano. “Em democracia ninguém está acima de crítica. Ninguém. Nem o poder eleito, nem os órgãos soberanos. Ninguém está. Essa é a essência da democracia. E parece-me que não devem ser confundidas questões, escrutínio, críticas, com ataques. Porque é normal que em democracia se queira fazer perguntas. É normal que se possa e queira perguntar à Justiça o que é que se passa com o tempo da Justiça”, defendeu em declarações aos jornalistas no bairro da Penajoia, concelho de Almada, em Setúbal, que visitou durante a tarde.

Mariana Mortágua considerou ainda “normal que se queira perguntar e que haja uma preocupação relativamente a violações de segredo de Justiça” ou sobre “o abuso de meios de investigação e de produção de prova, como por exemplo as escutas”. “É importante que a procuradora possa dar estes esclarecimentos que são normais. É o normal funcionamento da democracia. Foi por isso que entendemos que era importante que fosse ao parlamento, e essa exigência mantém-se. E acho que esta vontade de escrutínio não deve nem pode em nenhum momento ser confundida com qualquer tipo de condicionamento da Justiça”, sublinhou.

Mortágua realçou que “se existiu algum condicionamento que leva a procuradora a fazer uma afirmação deste género, é preciso denunciá-lo e ser concreta relativamente ao condicionamento que existiu, porque ele é sério, é grave em democracia”.

Também Paulo Muacho, do Livre, criticou a forma como Gago respondeu sobre os problemas de funcionamento do Ministério Público, sugerindo que “encara com total normalidade e como fazendo parte das funções do MP” o recurso a escutas durante anos ou a detenções demasiado prolongadas. “É preciso da parte do MP uma reflexão sobre os problemas da Justiça e o que cada ator tem de assumir. Haverá muito a melhorar no trabalho do MP”, atirou Muacho, defendendo que a procuradora e o MP não estão “acima de dar explicações ao país e aos deputados: “Na sequência da entrevista, ainda se justifica mais a audição”.

António Filipe, do PCP, concordou: a entrevista “pecou por tardia”, uma vez que há muito existia uma “perplexidade” sobre o trabalho da procuradoria que justificava que Gago falasse ao país, mas não “eliminou” a importância da audição parlamentar, uma vez que o uso destas ferramentas e os seus limites não foram discutidos na entrevista à RTP.

Já Inês Sousa Real, do PAN, atirou forte contra a PGR em várias frentes: considerou “lamentável” que nunca tenha concedido uma entrevista antes e que opte por fazê-lo agora, numa tentativa de “esvaziar” a audição que aí vem (a RTP esclareceu que a entrevista foi marcada antes de a audição ter sido aprovada); criticou a falta de “autocrítica” sobre o trabalho da procuradoria e do MP e a ideia de que estão “acima da lei”, inclusivamente com “insinuações” sobre o caso de António Costa, que a procuradora disse ainda estar a correr; e rematou: “Como a procuradora referiu, ninguém está acima da lei, incluindo a própria”.

Sindicato acusa PGR de “sacudir água do capote”: “Falhou e faltou à verdade”

A entrevista de Lucília Gago valeu-lhe ainda críticas da parte do Sindicato dos Funcionários Judiciais, que acusou a procuradora de “sacudir a água do capote” ao referir as paralisações dos oficiais de justiça para justificar os atrasos nos interrogatórios a cidadãos que estavam detidos (no caso das investigações de corrupção na Madeira, a situação prolongou-se durante cerca de três semanas até os detidos terem conhecido as medidas de coação que seriam aplicadas).

“Assisti à entrevista completamente incrédulo, para não usar outra expressão. Não corresponde minimamente à verdade e a PGR devia saber isso. Os meus colegas – quer nessa operação, quer nas outras duas que mencionou, a Operação Influencer e a operação com a claque do FC Porto – , estiveram muito além do horário de trabalho para garantir que os prazos não eram ainda mais alargados”, afirmou à Lusa António Marçal, presidente deste sindicato. Para Marçal, Gago escolheu culpar o “elo mais fraco e “perdeu uma oportunidade” para denunciar a falta de oficiais de justiça: “Falhou e faltou à verdade”.

“Em vez de vir defender a instituição que representa, veio fazer ainda mais ruído”, observou o presidente do sindicato, dizendo temer que as declarações de Gago possam levar a uma tentação de limitar o direito à greve dos oficiais de justiça e sublinhando: “Acho que foi uma fuga para a frente de que não tem nada para comunicar”.

À Lusa, o dirigente sindical rematou com mais ataques pela falta de assunções de responsabilidade da procuradora: “A PGR não é responsável por nada, não tem culpa de nada. Quando esteve calada, alimentou este ruído; agora que fala, vem ainda trazer mais ruído e não defender aquilo que era importante defender, que era a instituição MP e que é crucial num estado de direito democrático para que a justiça funcione corretamente”.