O Caderno Proibido impressiona, tanto pela fluidez da prosa como pelo que veicula. Eis-nos, abrindo o romance, metidos no pós-guerra. Fora de portas, a vida fazia-se de uma liberdade nova; dentro, a vida de todos os dias de uma mulher fazia-se como coisa periférica. Sendo gente comum, o próprio diário era uma aventura – e uma transgressão. Só por escrevê-lo já sentia transformar-se a vida.

Estamos na década de 1950 e, em Roma, Valeria Cossati, casada com Michele, mãe de Riccardo e Mirella, quase por casualidade, compra um caderno que lhe servirá para registar a vida – o que implica questioná-la, entendê-la, atá-la. Só o mero acto de escrever já ali sabe a transgressão: não apenas lhe permite pensar no seu papel na família e na sociedade como, ao fazê-lo, se desata das tarefas domésticas. Ao longo dos seus parágrafos, aliás, vemos de que forma essas tarefas a definem no seio familiar. É que, se por um lado, marido e filhos lhe dizem que descanse, como se trabalhasse por capricho, por outro, quando a vêem ler o jornal, pedem-lhe que faça isto ou aquilo por estar sem nada para fazer.

Ora, estando o mundo em movimento, Valeria decide também mudar o curso à própria vida, num romance que é mais do que enredo. Em vez disso, sabe a testemunho de uma época, a janela aberta para essa época, não descurando a vida de todos os dias. Pelo contrário, é a vida quotidiana, doméstica, quase coisa pouca, que mostra o estado de uma sociedade, não ignorando as convulsões históricas que, do outro lado da porta, fazem as capas dos jornais e sobrevivem nas aulas e nos livros.

O romance, que em teoria acantonaria, liberta. É que, pegando em preocupações tradicionalmente femininas, numa vida quase confinada à casa, no papel que as mulheres têm dentro da própria família – quase de organizadoras –, ao mesmo tempo que a vida pública e política fica adjudicada aos homens, Alba de Céspedes mostra que esta divisão de sexos é inteiramente política, e delineia uma narrativa em que a narradora se vem a aperceber do que antes não era tampouco questionado. Ao mesmo tempo, o romance joga com o vazio, mostrando de que forma, dentro de casa, as mulheres se apagavam e serviam. Vemo-lo nas considerações da narrativa, que vai dissertando sobre o dia-a-dia, quase sem tempo ou direito aos pensamentos, quase com medo de ousar ter qualquer desejo.

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Título: “O Caderno Proibido”
Autora: Alba de Céspedes
Tradução: Ana Cláudia Santos

Editora: Alfaguara
Páginas: 304

Aliás, só escrever, pelo tempo que implica, já a enche de remorsos, a ela, cujo cansaço é “a auréola do meu [seu] martírio” (p. 27). Em luta com a sua própria realização, de início, também Valeria escolhe o papel suposto – trabalhar mais e mais em vez de qualquer fuga, num cenário em que a ideia de folga parece mal vista. Se tem tempo para um passeio, talvez anule o direito de qualquer queixa de cansaço. Ora, a própria ideia de cansaço também tem aqui um papel primordial, já que admitir um breve repouso pode tirar-lhe a fama de dedicar cada minuto do seu tempo à família.

Ninguém parecia perceber que uma semana de descanso em agosto não podia impedir-me de estar cansada em outubro. Se às vezes digo: ‘Não me sinto bem’, Michele e os miúdos ficam brevemente num silêncio respeitoso e embaraçado. Depois, levanto-me, volto a fazer o que me compete. Ninguém se mexe para me ajudar, mas Michele grita: ‘Depois dizes que não te sentes bem, não paras quieta um instante.’ (p. 28)

O espaço íntimo de uma casa funciona como eixo a partir do qual a sociedade se organiza. De facto, o trabalho dos cuidados, aqui feito exclusivamente pelas mulheres, é necessário para que a reprodução se faça, e para que os homens tenham disponibilidade mental e temporal de serem agentes sociais. O que vai impressionando, ao longo da leitura, é o pudor com que Valeria reclama para si alguma coisa, parecendo indigno ter alguma aspiração, estando santificada a imagem da mulher servil.

E, nisto, a ideia do mero acto performativo de escrever como subversão já mostra de que forma o acantonamento e a domesticação das mulheres se fazia sentir de forma tão transversal, uma vez que actividade tão banal já mexia nas estruturas e nas expectativas. Para mais, o registo da vida permite que seja delineada, criada, entendida, uma identidade. Ao fazê-lo, o que parece sem episódios ganha corpo, o que faz da vida uma teia de acontecimentos mais corpórea. Enquanto o faz, é a sua anulação perante os outros que ganha espaço, tanto nela como na narrativa, e é o que vai criando a tensão necessária a que a vida tenha uma volta.

O caderno proibido marca um tempo, mas traz à leitura elementos que sabem a universais, como a esperança, o desejo, a frustração, a ideia de maternidade como sacrifício e o sacrifício como prova de boa maternidade e amor incondicional. A prosa de Céspedes mostra ao invés de explicar, ainda que vá havendo um fluxo de consciência constante que permite ao leitor pensar a partir da cabeça da narradora. E, sem intentos catequizadores ou pedagógicos, abre-se a porta para a vida e a cabeça de alguém.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia