Ne m’oublies pas é o livro de estreia de Alix Garin (1997), autora belga, que recebeu já uma série de prémios: Prémio Rossel da Banda Desenhada (2021), Prémio Frace Culture BD dos Estudantes (2021), prémio da BD Fnac Bélgica (2021), Prémio Babelio na categoria de Banda Desenhada (2021) e Prémio de Primeira Obra em Banda Desenhada da Federação Valónia-Bruxelas (2022). A autora começou a estudar banda desenhada na École Supérieure des Arts Saint-Luc, em Liège, tendo sido contratada pela Cartoonbase em 2018. Foi a partir daí que começou a trabalhar no livro que aqui trazemos e que já foi traduzido para 14 línguas. Chegou a Portugal há poucos meses, com tradução de Helena Guimarães.
A narrativa é pessoal e intimista, caindo sobre a relação entre uma avó e uma neta. A avó, com Alzheimer, esquece; a neta lembra-se de tudo, e cabe-lhe amar quem vai esquecendo. Logo à cabeça da narrativa, Clémence, a neta, tira a avó do lar e as duas iniciam uma incursão de carro, em busca da casa de infância da avó. O enredo é pouco mais do que isto, embora tenha as suas peripécias, e por isso o livro vale mais noutros aspectos. Há, claro, a dimensão gráfica: desenhos simples, de cores fortes, com pouco texto ou nenhum, de forma a passar a emoção para o leitor, a quem cabe interpretar o que lá está – e que, não raras vezes, é vazio.
Título: “Não me esqueças”
Autora: Alix Garin
Editora: Asa
Tradução: Helena Guimarães
Páginas: 224
Enquanto procuram, os episódios vão passando quase com relativa indiferença do leitor. Não é o problema no carro ou o hotel que interessam ao leitor. Interessa ver a confusão da avó a desenhar-se. Aos poucos, o Alzheimer vai dando conta da vida, tomando conta do espaço, secando tudo à volta. Se não reconhece a neta, torna-se agressiva. Em momentos em que, julgando-se uma criança, observa as próprias mãos, é assolada por uma confusão premente, tortuosa. A doença confunde-se com a loucura e toda a personagem é a confusão inevitável.
Procurando a casa da infância, sabe lá onde está a infância. O cérebro já está apagado por uma nuvem de acontecimentos esquecidos. O leitor, como a neta, vê uma velha – e a essa velha esquece-se das décadas que passaram, julgando-as futuro ainda. Avó, vê-se ainda filha, vê-se criança. A neta vê apenas a avó, e nem por ser esquecida deixará de a recordar até ao fim. Aos poucos, tacteando, com a imagem da própria pele, dá-lhe a entende que o tempo já passou, e que foi muito – e que isso significa que os pais não poderão estar naquela casa onde os procura.
Entre uma e outra, nesta jornada que sabe a reencontro, talvez o ponto em comum seja a solidão. De um lado, há a avó, desligada do passado e do presente. No lar, estava sem a família; fora dele, até tem a neta ao lado, mas isso de pouco vale nos momentos em que não a reconhece. Acercando-se da sua casa de infância, julgando que vai ver os pais, traz à narrativa o desencontro inevitável, as expectativas desalinhadas, a horrorosa imagem de uma criança que tem de pensar na mãe morta, no pai morto. Do outro lado, há a neta, que procura colo e dá colo no mesmo movimento. Enquanto a viagem prossegue, é ela quem faz e resolve, e quem literalmente leva a avó ao colo quando precisa de passos. Ao mesmo tempo, interiormente, vê-se que se desenha um conflito, em grande parte motivado por uma não-aceitação social. Aqui e ali, nas descrições do presente, vão aparecendo apontamentos que são memórias que irrompem e lhe estragam os momentos. Assim, se à tona existe uma coisa, na superfície há outra, e talvez aquela viagem seja mais do que reencontro – talvez seja fuga de um cenário em que a própria vida social a exclui.
De resto, ainda que o enredo consista na busca pela casa, vai tecendo os seus episódios pontuais, que vão tendo os seus pontos ora trágicos, ora cómicos. Isto vai dando cor à narrativa, mantendo a carga emocional e a negrura do momento. Ainda assim, servem para aliviar a tensão da tristeza e da comoção que a doença da personagem deixa no leitor.
De quadrinho em quadrinho, Alix Gario é particularmente exímia no desenho – ignore-se o aparente pleonasmo – de um estado emocional. Em Não me esqueças, tudo é emoção: começa no título, com a súplica, o desejo, e continua em cada confusão, em cada esquecimento, em cada migalhinha de lembrança. Num cenário em que a vida de uma família parece ficar esquecida, a autora teve o condão de conseguir cristalizar qualquer coisa. Já não é coisa pouca.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.