Enviado especial do Observador em Paris, França

Gabby Douglas, Jordyn Wieber, Aly Raisman, Kyla Ross e McKayla Maroney. 2012, ouro.

Simone Biles, Aly Raisman, Laurie Hernandez, Madison Kocian e Gabby Douglas. 2016, ouro.

Simone Biles, Jordan Chiles, Sunisa Lee e Grace McCallum. 2020, prata.

Depois de duas vitórias da Roménia e uma da China, os EUA começou a agarrar também a sua oportunidade de criar um legado na competição por equipas femininas dos Jogos Olímpicos. A discussão se era ou não uma das melhores ou mesmo a melhor geração nunca passou muito de uma conversa secundária mas ninguém tinha dúvidas sobre aquilo que os triunfos em Londres e no Rio de Janeiro tinham representado para uma equipa que era cada vez mais “a” equipa norte-americana. Qualquer equipa de basquetebol masculina pode ser mais apelativa, qualquer equipa de natação pode ser tão ou mais competitiva, qualquer equipa de futebol feminino pode ser mais vencedora, mas não havia nenhuma equipa que criasse a ligação empática com os adeptos, a imprensa e o próprio país como a equipa feminina de ginástica. Depois, o mundo caiu.

O impacto do caso Larry Nassar e todas as suas ramificações, entre aquelas que se tornaram públicas e de seguida corrigidas e outras que parecem continuar arrumadas numa gaveta a sete chaves como se fosse uma Caixa de Pandora que todos sabem existir mas ninguém quer abrir, foi maior e mais profundo do que algum dia se possa imaginar. Logo à cabeça para as atletas e para as famílias, claro. Depois, para aqueles que não sabiam mesmo aquilo que se estava a passar. Por fim, para a própria USA Team Gymnastics. Lesaram aquilo que ninguém podia lesar. Não protegeram quem mais tinha de ser protegido. Tornaram vulnerável quem tem de vestir a capa de super heroína todos os dias quase de madrugada – mesmo que os exercícios tendam a terminar no fim com um sorriso que esconde o sofrimento a que se sujeitam a cada ciclo olímpico.

Os Jogos de Tóquio poderiam ser a parte final da retoma em relação a uma ferida que provavelmente nunca irá ficar sarada. Nas zonas mistas, o tema Nassar tornou-se quase tabu. Estava omnipresente, não era falado por ninguém. Com o início da competição, aquilo que se começou a falar nada tinha a ver com esse caso do antigo médico da ginástica norte-americana. Simone Biles ainda fez a qualificação com apuramento para todas as seis finais possíveis, realizou o cavalo no concurso por equipas, parou. Voltou para a decisão da trave, onde terminou com uma medalha de bronze, mas ficou sobretudo como a atleta que teve a coragem de dar um salto em frente para assumir uma nova realidade chamada saúde mental e fez aquilo que deveria ser feito há muito tempo em todas as instâncias: o atleta e a pessoa estão acima de tudo o resto.

[Já saiu o primeiro episódio de “Um rei na boca do Inferno”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de como os nazis tinham um plano para raptar em Portugal, em julho de 1940, o rei inglês que abdicou do trono por amor.]

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Foi isso que a tornou um ícone tão grande, o maior nestes Jogos Olímpicos. Quando faltavam 45 minutos para o início da competição, Molly, uma canadiana que estava na bancada e que explicou ter feito todo o seu trajeto de ginasta com a internacional Elizabeth Black, assumiu que estava ali para torcer pela vitória do Canadá mas não deixou de falar em Simone Biles. Todos os caminhos iam ter à Arena Bercy. Todos os caminhos na Arena Bercy iam dar aos EUA. Todos os caminhos dos EUA param sempre em Biles. Olhamos para as imagens no ecrã gigante à nossa frente colocadas a meia hora do início da competição e lá está ela, 1,42 metros de uma atleta grande em tudo o que faz, em tudo o que pensa e em tudo o que assume.

Três anos depois, Biles iria agarrar na sua história nos Jogos Olímpicos onde tinha deixado em Tóquio. Foi isso que levou milhares e milhares de pessoas à Arena Bercy. Sem a equipa francesa na decisão por equipas, havia boas representações nas bancadas de todos os finalistas. EUA, Itália, China, Brasil, Canadá, Japão, Grã-Bretanha e Roménia, todos com claque. Eles e Biles, por quem todos os países faziam a sua claque. Se é verdade que a qualificação terminou sem a final das paralelas assimétricas e com uma lesão na zona do gémeo esquerdo que causou muita preocupação (pelo menos de fora, até pela forma como estava ligada), a norte-americana que teve um regresso fabuloso nos Mundiais de Antuérpia recuperou o seu sorriso.

Toda a imprensa internacional tentava dar mais pormenores sobre a ginasta com mais medalhas de sempre em Mundiais. O The Athletic conta um episódio no treino entre Simone Biles e Hezly Rivera, a mais nova da equipa, para depois citar a diretora técnica a dizer que nunca tinha visto uma equipa tão capaz de se unir. O El País destacava a “proeza de engenharia” que é colocar mais de 6.000 cristais Swarowski em menos de um metro de tecido. O The Telegraph tinha como foco a hipótese de Biles poder ser a ginasta mais velha de sempre a ganhar a medalha de ouro desde 1964, algo avançado pelo Comité Olímpico Internacional.

Com muitas figuras conhecidas nas bancadas além dos pais e da família, Biles nem precisou de ser tão grande como é normal para ficar com o ouro (e um pedaço da Torre Eiffel) ao pescoço. Arriscou menos do que é habitual no cavalo, esteve bem nas paralelas assimétricas com uma pontuação mais baixa do que tivera na qualificação de domingo, não se mostrou tão segura na trave como anteontem. No solo, carimbou tudo e mais alguma coisa: além de ser a melhor pontuação quando bastava apenas “confirmar” o título e foi logo fazer a festa com as companheiras que tiveram uma grande prestação ao longo de todo o concurso. Com a sua versão mais humana, reforçou o seu estatuto na história como a mais medalhada de sempre entre Jogos e Mundiais (34), bateu o registo de Shannon Miller como norte-americana com mais medalhas em Jogos na ginástica dos EUA (oito), empatou com Anton Heida como atleta com mais ouros na ginástica em Jogos (cinco) e tornou-se a mais velha a ser campeã olímpica na modalidade em 60 anos. E bastou ser “humana”, quase como se estivesse a guardar algo mais para as finais individuais que terá ao longo desta semana.

Há diferenças entre o que se vê na TV e ao vivo. Por exemplo, as brincadeiras das ginastas romenas quando foram apresentadas, o engano de uma chinesa na altura de acenar, a coreografia do quarteto japonês, o excesso de pressa de Simone Biles para entrar em cena. Quando a equipa dos EUA foi anunciada como a oitava finalista a começar no cavalo, a campeã, que desta vez liderava o grupo, saiu disparada em frente sem pensar na habitual apresentação individual ao público. Riu-se, meteu a mão na cabeça como quem tem noção da gralha, ficou divertida à conversa com Jade Carey. Como não poderia deixar de ser, todos os olhos iam estando concentrados no lado oposto à bancada da imprensa mas à esquerda havia preocupação entre todos os brasileiros, depois de Flávia Saraiva fazer um pequeno corte no sobrolho ainda no aquecimento.

Estava calor lá em baixo. Ruby Evans ficou com uma pequena ventoinha a bater na cara depois do exercício inicial no solo, Cécile Landi, treinadora de Simone Biles, abanava-se com uma folha. Também cá em cima se notava a diferença, não estando o frio na qualificação. Bom, também podiam ser apenas os ânimos a aquecer com o arranque da competição. A primeira rotação terminou, os EUA já estavam na frente tendo a China por perto e a Itália mais distanciada. Biles até fez um salto menos conseguido do que Jordan Chiles (14.400) e sobretudo Jude Carey (14.800) mas o grau de dificuldade que coloca em jogo é tão grande que fica sempre na frente (14.900). Outros destaques? Rebecca Andrade, Qiyuan Qiu e Yigan Zhang, nas assimétricas.

Na primeira rotação, e como todas as câmaras apontadas como sempre para ela, Biles voltou a ser apanhada a bocejar. Tinha sido assim antes de entrar na qualificação, voltou a ser assim agora. Ou seja, recapitulemos: é uma final olímpica, a primeira em Paris, ainda está no início e sai aquele gesto de quem não poderia estar mais tranquila da vida com o que se estava a passar. Mais uma vez, Biles foi aquilo que é nos treinos.

Se dúvidas ainda existissem de como este estava a ser o dia dos EUA, a segunda rotação que colocou a equipa nas paralelas assimétricas quase acabou com as contas num plano teórico e dentro de todas as surpresas que um pormenor falhado pode sempre provocar. Tudo correu bem. Com Biles sentada não nas cadeiras mas no início de um palanque que só abre para os aparelhos masculinos em posição de meditação, Chiles teve um grande início (14.366), Simone Biles arriscou menos do que na qualificação mas tudo o que fez foi bem feito para uma pontuação 0.33 mais baixa do que anteontem (14.400), Sunisa Lee fechou com chave de ouro a fazer a melhor nota (14.566). Mais: a China teve uma passagem desastrosa pela trave, que é o seu forte, e até Rebecca Andrade falhou no seu exercício face ao esperado. Os EUA levavam 87.432 pontos, tendo agora uma vantagem ampliada sobre a Itália (que fazia a mesma rotação dos EUA, 84.330) e a China (83.466).

As norte-americanas sabiam como estava a correr tudo mesmo não recebendo informações de como seriam as pontuações das formações adversárias. Era isso que lhes dava mais confiança, era isso que as deixava mais descontraídas. Tanto que, enquanto faziam tempo para passarem para o topo oposto da Arena Bercy onde estava a trave e mais uma legião de adeptos, foram acenando para os adeptos que estavam ali mais próximos, pediram para que se levantassem mais bandeiras e foram puxando pelo habitual USA, USA, USA.

Excesso de confiança? Também terá contado com a sua dose no arranque da terceira rotação. Jordan Chiles teve alguns pontos que tecnicamente não foram perfeitos mas, do exercício à saída, voltou a demonstrar o grande nível apresentado na final com o problema de ter falhado o mais “fácil”, na subida do trampolim para o cavalo (devido a essa pontuação ficou com 12.733). Para se ter noção do impacto que uma pequena falha pode ter, quando Manila Esposito fez a seguir 13.966 as transalpinas passaram a ter menos de dois pontos de diferença. Chegaram-se à frente as mais experientes, sobretudo a atual campeã olímpica all-around, Sunisa Lee, que com 14.600 começou a atenuar o lapso antes de Simone Biles pontuar também 14.366.

Faltava apenas mais um passo para a festa, com os EUA a passarem para o solo na frente com 3.6 pontos de vantagem sobre a Itália, a Grã-Bretanha a subir ao terceiro lugar e a China a cair para quinto com prestações baixas no solo. As caras com mais zoom que iam passando nos ecrãs descreviam o que se estava a passar: as norte-americanas sentiam o título próximo, as italianas estão compenetradas sabendo que faltava um passo muito pequeno para fazerem mais história, as britânicas reavivavam a esperança, as chinesas choravam na cadeira antes do início da passagem pelo cavalo, Rebecca Andrade continuava com aquela olhar mais ou menos resignado de quem queria ir pouco mais além. Ainda assim, havia tempo para tudo.

Houve um dado importante que ficou do aquecimento de Simone Biles: apesar de ter o gémeo esquerdo ligado, na tal lesão contraída no domingo, não se poupou a nada nessa fase pré-competição e também não apresentou qualquer queixa depois desses “testes”. Mais: as notas que foi tendo pareciam ser mais uma mera contribuição de pontos para um título que nunca esteve em causa, quase como se estivesse a guardar trunfos para as finais individuais sem falhar à equipa. Olhando para o que se passou, e mesmo tendo em conta que se Rebecca Andrade não tiver pequenas falhas como aconteceu na trave pode chegar mais acima, Sunisa Lee é a grande adversária de Biles na final all-around e foi a campeã em título que, depois de um erro de Manila Esposito (12.666), quase garantiu virtualmente o título com uma prestação no solo para 13.533, de seguida brilharam Jordan Chiles e Simone Biles. Foi um fechar com chave de ouro do título, num dia que terminou com tudo acabado e a olhar para a melhor de todos os tempos a brilhar no exercício no solo antes da festa dos EUA pelo título, da Itália pela prata e do Brasil pelo histórico bronze à frente da Grã-Bretanha.