Enviado especial do Observador em Paris, França

Torna-se quase uma rotina matinal em quase todas as publicações. Chega a hora, alguém abre o liveblog, as primeiras entradas são sempre com o programa de festas para o dia, depois começam as competições, vão entrando também os textos, é coisa para durar umas 16 horas sempre com uma garantia de que tem no título alguma coisa como dia x de Jogos (neste caso, dia 6) ou, no nosso caso, portugueses em ação. O The Athletic, uma das maiores publicações internacionais desportivas que ganhou ainda maior peso quando foi comprado pelo The New York Times, não vai por aí. Sim, tem o seu liveblog com várias coisas mas, umas horas antes do que interessa, chegam-se logo à frente com um artigo que não engana “Simone Biles updates”. Está em atualização, recupera peças, adianta pormenores sobre a atleta. Isto também é um símbolo de grandeza.

Há um texto que tenta resumir aquilo que é o impacto da norte-americana sempre que entra em ação na Arena Bercy (sendo que nem é preciso estar em ação na verdade), ainda a propósito da vitória conquistada pelos EUA na final por equipas. “Havia tudo. Havia mais do que suficiente para encher uma noite em Paris até acima. No entanto, havia Simone Biles. Qualquer coisa que entre em contacto com a órbita de Biles parece que de forma imediata acaba por ficar alinhado atrás de um eclipse grande e impossível. É algo que se tem de ver para acreditar e até para remotamente compreender. Todas as vozes com todas as opiniões sobre a mulher que é inquestionavelmente a maior ginasta da história norte-americana e uma das maiores atletas olímpicas de todos os tempos são pequenas, insignificantes face à escala da presença de Biles ali em frente. Ver Biles é como olhar para a Torre Eiffel. Está sozinha, é aquilo mas está rodeada de grandeza”.

Mas houve mais do que isso depois do triunfo da equipa dos EUA, recuperando um título que perdera numa fatídica edição de Tóquio-2020 com Biles a meio gás apenas a fazer o cavalo. Biles ganhou voz não apenas para falar de si, que é o mais importante, mas também para responder a outros. Respostas às questões dos últimos dias sobre a sua condição física pelo problema no gémeo esquerdo, respostas às dúvidas dos últimos meses se os Mundiais de Antuérpia teriam ou não prolongamento, respostas a coisas que ouviu há três anos e que não gostou. Assim se criou o “caso” dentro da festa por um título fundamental para todas:

Depois de MyKayla Skinner, antiga ginasta norte-americana, ter referido que a maioria das raparigas não trabalhava, não tinha ética no que fazia e que o programa SafeSport para proteger as atletas dos abusos que eram cometidos pelos treinadores tinha baixado a fasquia em relação aos limites que são necessários para fazer sofrer e ser melhor, Biles colocou nas redes sociais uma fotografia da equipa vencedora com a frase “Falta de talento, preguiçosas, campeãs olímpicas”. Qual Mark Twain, “as notícias da morte da equipa foram manifestamente exageradas”, não só para a grande referência do país mas também para o comportamento da equipa que, apesar de um ligeiro deslize de Jordan Chiles na trave, esteve quase perfeita e teve “alcunha”.

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[Já saiu o primeiro episódio de “Um rei na boca do Inferno”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de como os nazis tinham um plano para raptar em Portugal, em julho de 1940, o rei inglês que abdicou do trono por amor.]

Amanda Borden, Amy Chow, Dominique Dawes, Shannon Miller, Dominique Moceanu, Jaycie Phelps e Kerri Strug foram as Magnificent Seven de 1996. Gabby Douglas, Jordyn Wieber, Aly Raisman, Kyla Ross e McKayla Maroney as Fierce Five de 2012. Simone Biles, Aly Raisman, Laurie Hernandez, Madison Kocian e Gabby Douglas as Final Five de 2016. Simone Biles, Jordan Chiles, Sunisa Lee e Grace McCallum as Fighting Four de 2020. Agora, as novas campeãs Simone Biles, Sunisa Lee, Jordan Chiles, Jade Carey e Hezly Rivera ganharam o nome de Golden Girls. E a expressão “golden” tinha tudo para não ficar por aqui.

O Washington Post apresentava esta semana um trabalho multimédia fantástico com os movimentos que Simone Biles foi criando para se tornar a maior de sempre, quase que a prever a possibilidade do “tal” sexto movimento a que tentaria dar nome nas paralelas assimétricas e que, a sair numa grande competição, teria de ser esta quarta-feira por ter falhado a final desse aparelho. No entanto, essa era apenas uma parte de toda a história pela qual a norte-americana partia em vantagem para reconquistar o título all-around que ganhou no Rio-2016 e do qual “abdicou” em Tóquio-2020 por não ter ido à final. Em termos práticos, Biles tinha a fórmula que não tinha muito de magia para ganhar à concorrência: aumentar o nível de dificuldade. E foi assim que, de forma natural, recuperou a coroa que nunca deixou de ser sua como melhor de sempre.

É essa a grande vantagem de Simone Biles em relação à concorrência. Num grupos que tinha as principais adversárias (ou inimigas) por perto, a norte-americana abriu com 15.766 no cavalo. Não foram os 16.000 épicos do Rio mas permitiram cavar logo um fosso em relação às adversárias. Nas paralelas assimétricas, o seu calcanhar de Aquiles dentro do que se pode encontrar de defeitos perante a figura que está mais próxima do que é perfeição (13.777), Rebecca Andrade foi aos 14.666, Alice D’Amato subiu a parada aos 14.800 e a surpreendente argelina Kaylia Nemour conseguiu 15.533, mais do que a própria Sunisa Lee (14.866). Olhando para os resultados, estava tudo em aberto. Olhando para Biles, estava tudo “fechado”.

A dificuldade que coloca nos exercícios que faz dá-lhe aquilo que todas as ginastas ambicionavam ter mas ficaram sempre pelas intenções: margem de erro. Foi assim que, quando todas chegaram ao cavalo, a norte-americana foi a melhor com 14.566, outra nota abaixo do que fizera naquele brilharete no Rio-2016. Para essa comparação era curto, para o resto chegava e sobrava. Faltava apenas carimbar o título com o exercício no solo. Sunisa Lee tinha acabado de confirmar o pódio perante uma Kaylia Nemour de cara fechada e uma Alice D’Amito resignada, Rebecca Andrade brilhou para confirmar o que no mínimo seria prata. Faltava só Simone Biles. Sentada nuns degraus, respirou fundo, sacou da sua melhor versão e chegou aos 15.066, que dariam 1.199 de vantagem sobre a brasileira e 2.666 sobre a compatriota. A G.O.A.T. tinha acabado de reconquistar o título antes de ir à conferência com um colar com a imagem de uma… G.O.A.T.