Enviado especial do Observador em Paris, França
“O monstro voltou”. Por mais do que uma ocasião nas últimas semanas, Jorge Fonseca reassumiu todo um discurso de confiança que tentava recuperar aquela figura cheia de força capaz de virar paredes e montanhas como quem faz a coisa mais fácil do mundo. “Não, agora já estou bem, já estou monstro e só quero ir para lá dar porrada neles”, atirava. Uma, duas, três vezes. No entanto, e ao contrário do que aconteceu em Tóquio, as dificuldades ao longo do ciclo tinham sido mais do que muitas. Mesmo muitas. As lesões complicadas que o colocaram num processo de ter de aprender com aquilo que não conhecia, os resultados que não iam saindo, aquele receio de que não voltasse a ser o mesmo, a desilusão em relação ao curso de polícia. Com uma reta final a dar tudo, ele chegou. Ele que queria ser Ele, numa promessa feita logo após o bronze olímpico.
“Queria dançar pimba mas era com ouro no pescoço, tem uma graça diferente. Mas bronze… vá, podemos dançar uma kizomba. Mas eu não quero dançar kizomba, quero dançar pimba! Posso garantir que vou dançar pimba em Paris, lá na terra dos franceses, ali a ‘comê-los’ todos. Eu estou um bocado por aqui [apontando para a zona da garganta] com os franceses porque um deles [Alexandre Iddir] eliminou-me em casa [Europeu de 2021, na Altice Arena, em Lisboa] e depois meteu-se aos gritos na minha cara. Nenhum homem pode gritar na minha cara, que eu não gosto. Aquele francês fez isso e quero eliminá-lo em casa dele e festejar na cara dele, porque sou rancoroso, não gosto de perder.
Festa na Aldeia Olímpica? Não quero festa, não me motiva festejar o bronze. Só festejo com ouro. Agora vou comer bem, divertir-me, levar na cabeça do meu treinador, ver o combate para ver o que é que correu mal. A festa, festa mesmo, vai ser em Paris. Vai ser em Paris e vai ser no Marquês de Pombal, com o ouro no pescoço. Vou organizar uma festa em Paris e outra no Marquês de Pombal, com os adeptos todos, os meus fãs todos. As marcas diziam que não era campeão, que não tinha mérito desportivo… Essas pessoas só me alimentam, só me dão motivação. Agora eles podem fazer o que quiserem, eu sou o Jorge Fonseca, bicampeão do mundo e terceiros nos Jogos…”
Este era o Jorge Fonseca acabado de ganhar a medalha de bronze em Tóquio-2020, naquela que foi talvez a sua versão mais natural e mais espontânea que lhe conhecemos. Problema? Paris-2024 não foi logo a seguir. Se Paris-2024 fosse uma semana ou um mês depois, o “monstro” tinha tudo para ganhar, até pelo tempo que ganharia para trabalhar aspetos de controlo emocional que permitissem controlar de outra forma aquelas cãibras nos dedos da mão que da bancada pareciam deslocados e que pesaram nas meias-finais.
Problema? Três anos depois, a ideia que ficava era que o “monstro” dizia ter voltado sabendo que não estava tão “monstro” como em Tóquio. A vida de Jorge Fonseca, o homem e o atleta, é uma constante corrida de fundo a superar obstáculos em modo de aceleração. Foram as dificuldades no início, foi a falta de técnica que é típica de quem começa tarde na modalidades, até a estatura mais baixo em relação aos adversários dessa categoria de -100kg. Foi, mais tarde, um susto com um cancro descoberto quase por acaso que o abalou sobretudo pelas notícias que saíram e que fizeram com que sentisse a sua privacidade lesada. Não gostou, não queria preocupar ninguém, esperava que o problema fosse superado para, então, poder falar. Superou tudo. O judoca do Sporting é alguém puro, que sente e vive tudo com uma enorme intensidade quando toca a si e aos seus mais próximos. Agora, tinha mais um desafio gigante para conseguir superar.
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O próprio sorteio foi um desafio a esse dilema entre o “monstro” que dizia ter voltado nas palavras sem que isso pudesse ou não corresponder aos atos. Era a principal dúvida, a grande dúvida, e quando se soube quem teria pela frente o cenário adensou-se. O português até podia ter passado de forma automática a primeira ronda mas iria ter logo pela frente o japonês Aaron Wolf, campeão olímpico em Tóquio e antigo campeão mundial, sendo que em caso de vitória seguia-se o georgiano Ilia Sulamanidze, duas vezes vice-campeão nos Europeus mas um dos nomes em melhor momento. Para quem está de fora, repetir o bronze era quase um “mínimo olímpico”; para quem acompanhou esse caminho, era uma missão quase impossível.
A própria postura antes do combate era diferente de Tóquio. Na zona mista, já mais calmo, o judoca referiu que estava igual mas aquela imagem do “monstro” pronto para ir à luta no Japão chocava com esta de Paris. Na zona de espera, com kimono branco e os dedos das mãos ligados, ia olhando para o que se passava, dava um olho nas bancadas, cruzava os braços. O treinador de Aaron Wolf ativava o judoca japonês com aquelas palmadas nas costas que ao comum mortal faria saltar qualquer coisa do sítio, Fonseca e o técnico Pedro Soares estavam muito calmos e serenos. Também aí, o português apresentava uma postura diferente.
Foi assim antes, foi assim no combate. Ao contrário daquela imagem que temos de Jorge Fonseca a assumir o combate, a não deixar o adversário respirar e a arriscar mesmo que isso às vezes se pudesse virar contra si, aquilo que se viu foi um combate com poucas pegas capazes de gerar movimento, ainda menos ataques que pudessem ameaçar os pontos e muita luta de dedos no agarrar da manga. A única coisa que desequilibrava eram os castigos, com Fonseca a ficar tapado a 40 segundos do fim contra um do nipónico. Pedro Soares dava indicações, o português tentava outro tipo de ataques, o japonês mostrava que tinha feito bem os trabalhos de casa, quase que sabendo que uma boa defesa ia desgastando e frustrando Fonseca. No último segundo, o momento fatídico: Aaron Wolf fez ippon e eliminou o português logo na segunda ronda.
Poucos minutos depois, Patrícia Sampaio daria prolongamento a uma manhã inesquecível com a passagem às meias-finais, o que acabou por atenuar essa frustração numa perspetiva nacional. No entanto, aquela imagem de desalento de Jorge Fonseca a deixar o tatami e a percorrer o corredor continuava na cabeça. Era quase como se a ficha ainda não tivesse caído. Chegados à zona mista, a ficha estava a cair. Jorge Fonseca chorava sem parar no chão, de joelhos. “Era o meu sonho, era o meu sonho…”. Toda a tristeza estava a vir cá para fora num daqueles momentos que são necessários para dar o passo seguinte. Ele já deu. Regressou depois à zona de entrevistas rápidas da RTP, voltou ao ponto onde estava caído. De tronco nu, a transpirar tanto ou mais do que no combate, ergueu-se para falar sem soluçar sobre a manhã que não queria.
“Não era o resultado que estava à espera. Trabalhei imenso para isto e infelizmente perdi… Agora é continuar a trabalhar para outros objetivos”, começou por dizer, numa frase curta que também ela representava aquilo que é um anti-Fonseca, alguém que gosta de falar, de explicar as coisas, de “justificar” o que se passou quer ganhe ou perca. Nas respostas seguintes, esse Fonseca voltou. “Ele é campeão olímpico, já foi campeão do mundo e estudou-me bem. Criou-me imensas dificuldades, tentava meter os meus ataques fortes e ele defendia bem. Estudou-me bem, a esse nível estamos iguais uns aos outros. Fui para dar tudo, ele bloqueou os meus ataques, lutei para sobreviver, dei tudo de mim mas infelizmente não deu”, apontou.
“Ter entrado na segunda ronda não foi um problema. O judo é assim, o alto nível é isto. Ele é um campeão olímpico, não lutei contra uma pessoa qualquer. Fiquei feliz por lutar com um campeão olímpico, para mim foi um grande objetivo e agora é levantar a cabeça e lutar pelos próximos. Los Angeles? Espero bem que sim, tenho 31 anos, espero continuar neste desporto por muito tempo e se não tiver lesões como no ano passado espero continuar assim muito tempo. Paris? Pois, continuo a ter essa mágoa com Paris… É uma grande frustração porque nunca consegui ganhar um ouro nesta cidade que é das minhas favoritas, ainda por cima tenho a uma grande figura em casa, que é o meu treinador [Pedro Soares], que já ganhou aqui o Grand Slam de Paris. Queria surpreender, também ele, mas agora é tentar ir dando o melhor”, prosseguiu.
“Estou um bocado desiludido comigo mesmo porque queria dar uma alegria aos portugueses, aos meus familiares, às pessoas que me apoiaram mas não aconteceu. Agora é trabalhar. Trabalhar, trabalhar, trabalhar para ficar mais forte. Em Tóquio ainda era um miúdo mas agora tive muitas lesões. Vocês não acreditam mas eu passei por momentos muito difíceis, estive um ano parado no judo, sem competir, sem nada. Foi um ano de muita frustração. Depois quando fiz o apuramento para os Jogos estava bem, senti que estava capaz apesar de haver dúvidas, treinei muito, trabalhei a cabeça com psicólogo, nutricionista, os fisioterapeutas do Sporting que me apoiaram. Tentei ser um Jorge mais velho, mais experiente, um Jorge que não luta logo bum, bum, bum, começar aos poucos mas o japonês foi mais inteligente. Jogou como um campeão, quando luta com um monstro tem de defender primeiro o monstro para depois ganhar. Estou feliz por ele, triste por mim e agora vai ser continuar a trabalhar”, concluiu o judoca português.