Um casal argentino, dois filhos e uma moradia na Eslovénia. A mulher fazia a gestão de uma galeria de arte online, a Art Gallery 5’14, e dizia aos vizinhos que tinha saído da Argentina depois de ter sido assaltada ao parar o carro num semáforo; o marido afirmava ser fundador de uma startup chamada DSM&IT. Uma família descrita pelos vizinhos como “normal” e “quieta”, mas que, afinal, era composta por espiões ao serviço do governo da Rússia.

Apresentavam-se como Maria Rosa Mayer Muños e Ludwig Gisch, mas as autoridades eslovenas descobriram que eram, na realidade, Anna Dultseva e Artem Dultsev, agentes secretos russos treinados para se fazerem passar por estrangeiros e viverem fora de Moscovo sob uma falsa identidade. O casal, que tinha sido detido em 2022, foi esta quinta-feira libertado na sequência da troca de prisioneiros entre o Ocidente e a Rússia.

À chegada ao aeroporto de Moscovo, a família foi recebida por Vladimir Putin. Como falavam com os pais em espanhol, as crianças, atualmente com 8 e 11 anos, não sabem falar russo. Por isso, de acordo com a agência Ria Novosti, o Presidente da Rússia teve de as cumprimentar em espanhol. Mas há mais: o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse que os menores só souberam que tinham descendência russa quando o avião que os levou até à capital desse país saiu de Ancara.

O primeiro capítulo de uma vida dupla: 2012, Buenos Aires

A primeira saída da Rússia para viverem num país estrangeiro aconteceu em 2012. Artem Dultsev chegou à Argentina com um visto turístico e, pouco depois, Anna Dultseva entrou no país a partir do México. De acordo com uma investigação do The Wall Street Journal, publicada no final de junho, o casal começou, desde logo, a juntar documentos — muitos falsificados — para pedir a cidadania argentina. A história que contavam era a seguinte: ele era um austríaco nascido na Namíbia e com mãe argentina, ela era mexicana e tinha nascido na Grécia.

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Terá sido quando se mudaram para Buenos Aires que assumiram as novas identidades, de Maria e Ludwig. Já nessa altura, tal como viria a acontecer na Eslóvenia, eram descritos por vizinhos ou conhecidos como um casal discreto. Em 2012, Dultsev pediu oficialmente a cidadania argentina e, um ano depois, foi a vez da mulher. Ainda em 2013 tiveram a primeira filha, Sophie. O segundo filho, um rapaz chamado Daniel, chegaria em agosto de 2015.

Um mês depois casaram-se numa “pequena” cerimónia que contou com dois cidadãos colombianos como testemunhas. Não terá sido, ainda assim, a primeira boda do casal. De acordo com documentos da Interpol e de um tribunal argentino, bem como de informações obtidas pelas autoridades da Eslovénia, que são citadas pelo The Wall Street Journal, Artem Dultsev e Anna Dultseva ter-se-ão casado na Rússia antes de deixarem o país rumo à Argentina.

O segundo capítulo de uma vida dupla: 2017, Eslovénia

A mudança da Argentina para a Eslovénia aconteceu no verão de 2017. Nesse país não levavam uma vida que chamasse a atenção das autoridades. Declaravam e pagavam impostos e as suas empresas não tinham financiamentos públicos, nem acordos com entidades que operassem dentro de paraísos fiscais. No dia em que a Rússia invadiu a Ucrânia, em fevereiro de 2022, o casal regressou à Argentina para pedir um novo (e consequentemente limpo e sem registos de viagens) passaporte. Depois do pedido urgente regressaram à Eslovénia e, meses depois, começaram a estar na mira das autoridades.

A agência de espionagem SOVA, da Eslovénia, recebeu uma “dica” de um serviço aliado de que deveria investir os nomes Maria Rosa Mayer Muños e Ludwig Gisch. A partir daí, as autoridades começaram a desvendar o “puzzle” até descobrirem as verdadeiras identidades do casal: Artem Dultsev e Anna Dultseva, dois agentes de elite do serviço de espionagem da Rússia (SVR, na sigla em russo).

Durante as buscas à casa onde o casal morava, as autoridades encontraram um compartimento secreto dentro do frigorífico com centenas de milhares de euros em notas. Por outro lado, os computadores que utilizavam tinham um hardware para comunicar com Moscovo que era tão encriptado que nem técnicos eslovenos, nem norte-americanos conseguiram decifrá-lo. O The Guardian, que cita uma fonte anónima, avança ainda que num escritório que era utilizado pelos Dultsev foi encontrado tanto dinheiro que a polícia demorou várias horas a contá-lo.

Artem Dultsev e Anna Dultseva foram detidos em dezembro de 2022 por suspeitas de estarem a utilizar a Eslovénia, país membro da NATO, como base para viajarem para outros países europeus para pagarem a fontes e comunicarem a outros ordens enviadas por Moscovo. Foram também acusados, pelas autoridades, de já estarem a espiar em solo esloveno, tendo como principal alvo a Agency for the Cooperation of Energy Regulators, agência que coordena as ações regulatórias da UE sobre eletricidade e gás natural.

Os filhos do casal foram colocados sob cuidado do estado da Eslovénia e ficaram com uma família de acolhimento. Ainda assim, podiam visitar regularmente os pais na prisão. De acordo com o The Wall Street Journal, os Dultsev tinham preparado as crianças para a possibilidade de um dia serem “capturados”. Não se sabe se os menores tinham conhecimento da verdadeira profissão dos pais.

Após a detenção, o casal recusou-se a cooperar com as autoridades. A Rússia entrou em contacto com a Eslovénia para tentar negociar uma libertação, tendo reconhecido os Dultsev que trabalhavam para o SVR. Um acordo entre os países não foi alcançado e o caso chegou a julgamento, que foi realizado à porta fechada.

No dia 31 de julho, os suspeitos declararam-se culpados das acusações de espionagem e falsificação de documentos. Foram sentenciados a 19 meses de prisão, o equivalente ao tempo que já tinham passado detidos, e receberam uma ordem de expulsão da Eslovénia, ficando proibidos de regressar ao país durante cinco anos.

Por terem sido condenados ao tempo que já tinham passado na prisão, os meios de comunicação internacional, como o The Guardian, especularam logo que o casal faria parte da troca de prisioneiros entre o Ocidente e a Rússia, algo que se veio a confirmar menos de 24 horas depois.

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