Enviado especial do Observador em Paris, França

A manhã na La Défense Arena com natação, o início da tarde no Grand Palais com esgrima, o final da tarde na Arena Bercy com trampolins. Se na primeira semana de Jogos Olímpicos ainda havia muitos parisienses pela cidade que não deixa de ser sua, agora são cada vez mais turistas. Uns vêm acompanhar as provas em variados pontos, outros estão a conhecer os vários pontos de interesse da Torre Eiffel ao Louvre, passando pelos Inválidos ou pelo Arco do Triunfo numa lista onde o difícil mesmo é escolher. Nota-se essa diferença no metro, com os norte-americanos e os brasileiros a terem duas das maiores falanges de apoio vindas de fora. Aqui, havia um pouco de tudo. E era no terreno sagrado onde Simone Biles já ganhou dois outros que se ia realizar a final masculina dos trampolins, uma daquelas decisões que pode cair para qualquer lado.

Havia atletas mais favoritos do que outros mas uma das questões que as finais da modalidade nas últimas edições dos Jogos têm mostrado é como um pequeno erro pode deitar tudo por terra. Tem sido também isso a “condicionar” os resultados de Portugal nos trampolins, numa série de participações consecutivas que já vem desde 2004 quando Nuno Merino conseguiu em Atenas um histórico sexto lugar que não mais voltou a ser superado. Houve Diogo Ganchinho (11.º) e Ana Rente (16.º) em 2008. De novo Diogo Ganchinho (15.º) e Ana Rente (11.º) em 2012. Diogo Abreu (16.º) e Ana Rente (11.º) em 2016. Diogo Abreu (11.º) em 2020. Esta é uma daquelas competições onde a presença nos Jogos é uma vitória, tendo em conta que só os 16 melhores do mundo conseguem apuramento. No entanto, o estreante Gabriel Albuquerque sonhava com mais.

Aos 18 anos, o mais novo representante de Portugal em Paris fazia a estreia na principal competição sem ter um resultado específico como objetivo mas a querer soltar-se para mostrar o melhor que sabe – e se isso valesse final ou algo mais, melhor. Sendo um miúdo que não conseguia parar sossegada quando era mais novo, tudo começou da forma mais improvável possível, como contou numa entrevista ao MaisFutebol antes dos Jogos. “Sempre fui uma criança hiperativa e sempre fiz muitos desportos. Fiz natação, judo, surf, entre muitas outros. Um dia fomos a uma feira no Seixal onde havia muitas modalidades. Equitação, muitas coisas. Mas o que me chamou logo a atenção foi o trampolim. Vi os miúdos a saltarem no trampolim e disse: ‘Tenho de experimentar isto’. E gostei muito. Ali a partir dos 11, 12 anos, da idade em que se começa a ir a provas internacionais, ia sempre às finais, ou então conseguia uma medalha”, contou o jovem atleta.

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Nascido em Lisboa, teve depois outra mudança marcante na vida, quando rumou ao Algarve na sequência de um convite pelo treinador para rumar a Loulé quando tinha 11/12 anos. Foi por isso que chegou a Paris como atleta da Associação de Pais e Amigos da Ginástica de Loulé (APAGL), clube que sempre representou nesta modalidade e que permitiu dar-se mais a conhecer num outro lado apresentado pelo Comité Olímpico de Portugal: está a concluir o 12.º ano em Desporto, gostava de seguir Psicologia ou Ciências da Comunicação, adora música, tem como hobbie escrever. Escreve como se estivesse a pensar numa música, escreve na forma de um poema, escreve. Agora tinha um livro em branco chamado Jogos Olímpicos para completar. E se os Europeus em Guimarães não correram da melhor forma devido a um erro técnico mas, antes, Gabriel Albuquerque tinha feito sexto lugar numa Taça do Mundo de Cottbus e quarta posição nos Mundiais.

Uma hora antes do início da qualificação, Gabriel Albuquerque estava simplesmente na dele. Sempre que ia fazer exercícios de aquecimento, as pessoas que começavam a encher a Arena Bercy reagiam sempre com aplausos. Porque gostavam, claro, mas também porque eram muitos os portugueses presentes em pequenos grupos distribuídos por várias bancadas. Só mesmo quando os treinadores falavam com ele é que Gabi tirava por uns segundos os phones. Era quase como se não existissem bancadas, não existisse recinto, não existisse a pressão de uma estreia nos Jogos aos 18 anos. Mais tarde, iria perceber-se que era mesmo assim.

O português entrou apenas na segunda série e na última posição, sendo o 16.º a fazer o exercício inicial. A cara era de foco, de confiança, de alguém que sabe o que vai fazer e quer mostrar-se. Só mesmo depois de ter passado pela zona onde os atletas colocam um pouco de talco é que Gabriel Albuquerque tirou os phones e deu ao treinador. Fez tudo, fez tudo bem, recebeu uma enorme salva de palmas com os muitos portugueses a conseguirem contagiar a euforia aos restantes espectadores. Sobre a nota, o facto de ter saído de punho esquerdo fechado a dizer “Vamos car*****” dizia tudo: quarto lugar com 59.750 pontos. A final ainda não estava matematicamente certa mas percebia-se que só muito dificilmente não estava a ser feita história.

Como é normal, a segunda ronda de exercícios foi diferente, com mais falhas e tentativas interrompidas a maio. Quem estava atrás tinha de arriscar, quem arriscava ficava mais exposto, quem ficava mais exposto podia depois não conseguir da mesma forma as linhas e os saltos. Foi assim que, quando os oito primeiros fizeram a sua parte, Gabriel Albuquerque tinha o lugar garantido na final, tornando-se apenas o segundo ginasta a conseguir o feito 20 anos depois de Nuno Merino (que após terminar a carreira rumou aos EUA como treinador). A segunda tentativa do português ficou a meio, com 31.070, mas o apuramento era uma certeza neste caso com o quinto lugar, ultrapassado pelo neozelandês Dylan Schmidt (60.810).

Ivan Litvinovich, atleta bielorusso que compete como neutro, teve a melhor pontuação (63.420) seguido dos dois chineses, Zisai Wang (62.230) e Langyu Yan (62.220). Falávamos, a par do neozelandês, de campeões do mundo e medalhados olímpicos. Sem o chinês Dong Dong, falávamos do primeiro e do terceiro em Tóquio-2020, onde a dupla de chineses não esteve. O sonho das medalhas é algo difícil de contrariar para qualquer pessoa mas, de forma realista, igualar o registo de Nuno Merino já seria uma façanha histórica. Era para isso que ele ia trabalhando sendo de novo o último a entrar em ação. Esteve sempre de pé, esticava as pernas, sentava-se. Sempre a ouvir música, tendo o telefone na mão ou no bolso para quando queria trocar de música. Aquela postura descontraída parecia estar a mudar com a chegada do momento.

“Trust the process, be patient, the time always comes” (Confia no processo, sê paciente, a tua vez chega sempre) é o lema de Albuquerque e foi assim que fez mesmo história: com 59.740 pontos, o português ficou na quinta posição e superou o sexto lugar de Nuno Merino em Atenas, com essa particularidade de ter logo recebido um grande abraço do agora técnico da equipa dos EUA quando o sonho se tornou realidade. Ivan Litvinovich foi o primeiro campeão olímpico em Paris a competir como neutro, revalidando o título de Tóquio-2020 com 63.090, seguindo-se os chineses Zisai Wang (61.890) e Langyu Yan (60.950). Gabriel Albuquerque pode não ter chegado ao pódio mas ficou a sua “medalha” a sonhar com a próxima medalha.