É a polémica do momento dos Jogos Olímpicos de Paris e parece não ter ainda um fim à vista. Tudo começou na passada quinta-feira, quando a italiana Angela Carini abandonou o combate de boxe, na categoria de -66 kg, frente à argelina Imane Khelif — apenas 46 segundos depois do início — depois de ter sido atingida por um soco da adversária. Depois da desistência, recusou-se a cumprimentar a adversária e disse querer “preservar a vida”, sugerindo que haveria uma desigualdade entre as duas atletas.

“Nunca fui atingida com tanta força na minha vida. Cabe ao Comité Olímpico Internacional julgar”, disse Carini depois. Com a controvérsia disseminada na comunicação social e nas redes sociais e chegar até à arena política, surge agora uma questão. Deveria Imane Khelif ter sido autorizada a competir, quando, há um ano, foi desqualificada nos Campeonatos do Mundo de Boxe por não ter passado nos critérios de elegibilidade?

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Depois da polémica entre as duas jogadoras — que levou depois Angela Carini a pedir desculpa à adversária depois do combate, segundo contou a própria ao jornal italiano Gazzeta dello Sport — ganha agora protagonismo uma controvérsia entre federações desportivas: de um lado, a Associação Internacional de Boxe (IBA), que discorda da participação da atleta; do outro, o Comité Olímpico Internacional, que, enquanto organizador dos Jogos Olímpicos, autorizou Imane Khelif a competir.

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Quem é Imane Khelif?

Nascida em 2 de maio de 1999, Khelif é uma pugilista argelina que compete em provas de boxe desde 2018, embora pratique este desporto desde criança. Há seis anos, quando tinha 19 anos, ficou em 17.º lugar no Campeonato Mundial de Boxe Feminino em Nova Deli. Segundo o site especializado Sporting News, nos Jogos Olímpicos de 2021, Khelif chegou até aos quartos de final da prova, sendo eliminada pela irlandesa Kellie Harrington. No ano seguinte, chegaram as primeiras conquistas: venceu os Campeonatos Africano e Mediterrâneo e chegou à final do Campeonato Mundial de Boxe em Istambul, na Turquia. Foi apenas derrotada na final por outra irlandesa, Katie Broadhurst.

Até o momento, Khelif fez 50 combates de boxe na sua carreira, vencendo 41 e perdendo nove, contabiliza a BBC.

Nos Campeonatos do Mundo de Boxe do ano passado, que decorreram no Uzbequistão, Khelif foi desqualificada pela Associação Internacional de Boxe, que explicou depois que a atleta não tinha cumprido os critérios de elegibilidade. A atleta ainda recorreu da decisão para o Tribunal Arbitral do Desporto mas acabou por retirar o recurso.

Só que a própria organização não explica que critérios estiveram na base da desqualificação de Khelif. Segundo a revista The Economist, a IBA recusou-se a prestar esclarecimentos sobre o tema, alegando razões relacionadas com a privacidade, mas recusou a ideia que em causa estivesse o teste de testosterona, dizendo ter sido feito um teste “separado e reconhecido”. Por essa altura, o presidente da IBA disse à imprensa russa, que estava a acompanhar o evento, tanto de Khelif como da pugilista de Taiwan Li Yu-Ting (também afastada) e que as duas atletas testaram positivo para cromossomas XY — ou seja, masculinos.

Desinformação inundou redes sociais. Khelif não fez testes de testosterona

No dia 1 de agosto, logo depois do combate de boxe em Paris, multiplicaram-se as publicações (com desinformação) nas redes sociais, que defendiam que Khelif era uma atleta transgénero ou que seria mesmo um homem e que deveria, por isso, ter sido impedida de participar na competição feminina, uma vez que teria uma vantagem de base sobre as restantes atletas. O debate em torno do tema aqueceu e envolveu até figuras públicas, como políticos. Em Portugal, deputados como Rita Matias (Chega) e João Almeida (CDS-PP) expuseram a sua posição na rede X.

A primeira-ministra italiana, que viu a compatriota abandonar o combate contra a argelina, reagiu queixando-se de que as atletas “não estavam em pé de igualdade” e Donald Trump, candidato republicano às presidenciais dos Estados Unidos, escreveu na rede social X que manterá “os homens fora dos desportos femininos”. Mas também o multimilionário Elon Musk e a escritora J.K. Rowling, conhecida pela criação da saga Harry Potter, vieram a público defender que haveria uma “vantagem biológica” que favoreceria Khelif, falando até em “traição às mulheres”.

As reações podem ter sido precipitadas pela informação que constava no site dos Jogos Olímpicos de Paris, que, inicialmente, referia que Khelif tinha sido desqualificada dos Campeonatos mundiais de Boxe por causa de “níveis elevados de testosterona”. A informação foi entretanto removida.

Em reação à polémica, o presidente do Comité Olímpico Internacional, Thomas Bach, criticou o que considerou ser o “discurso de ódio” visando a atleta argelina e a pugilista de Taiwan Li Yu-Ting e garantiu que o COI não alinha em “guerras culturais”. “Temos duas pugilistas que nascem como mulher, que foram criadas como mulher, que têm no passaporte ‘mulher’ e que competiram durante muitos anos como mulher. Esta é a definição clara de uma mulher. Nunca houve qualquer dúvida sobre elas serem mulheres”, defendeu, este sábado, citado pelo The Independent.

Imane Khelif é mulher. Nada indica o contrário

Mas a verdade é que Khelif é uma mulher. Nasceu mulher, está identificada como mulher no seu passaporte argelino e não consta que alguma vez tivesse iniciado qualquer processo de transição de género. Não é uma pessoa transgénero (que não se identifica com o género com que nasceu). E mesmo que se comprove a presença de cromossomas XY, isso não significa que a atleta seja um homem. Alguns atletas podem ser afetados por Transtornos do Desenvolvimento Sexual, uma série de condições médicas raras, que envolvem genes, hormonas e órgãos reprodutivos, segundo a explicação que consta no site do serviço nacional de saúde britânico. Uma dessas condições é o Síndrome de Swyer, que é um distúrbio do desenvolvimento sexual associado a anomalias do desenvolvimento gonadal que resultam na presença de genitais femininos externos e internos, apesar do cromossoma XY.

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Noções clínicas que parecem ter passado ao lado da Associação Internacional de Boxe, que continua a considerar, nos seus estatutos, que uma mulher é “um indivíduo com cromossoma XX” e um homem “um indivíduo com cromossoma XY”. Ao contrário da IBA, várias federações internacionais, como as da natação, do atletismo e do ciclismo, atualizaram já as suas orientações sobre o tema nos últimos anos, lembra a Associated Press.

Associação de Boxe e Comité Olímpico em rota de colisão

Com um entendimento contrário ao da IBA, o Comité Olímpico autorizou a participação de Khelif em Paris, com críticas audíveis à associação que, até há poucos meses, geria o boxe a nível mundial. Em comunicado, ainda durante o dia de quinta-feira, o COI afirmou que, em 2023, as duas atletas (Khelif e a pugilista taiwanesa) foram “vítimas de uma decisão arbitrária da IBA” e sublinhou que as acusações de que a argelina está a ser alvo são “baseadas inteiramente nessa decisão arbitrária, que foi tomada sem qualquer procedimento adequado – especialmente considerando que essas atletas estavam a competir ao mais alto nível há muitos anos”.

Há anos que a tensão entre a IBA e o COI vem em crescendo. O Comité Olímpico suspendeu aquela federação em 2019, por ter detetado problemas com as finanças e gestão do organismo — na mesma altura em que o russo Umar Kremlev assumiu a presidência do organismo, tendo sido acusado de usar a IBA para promover a empresa estatal russa Gazprom, alvo de sanções na sequência da guerra na Ucrânia. No ano passado, e não tendo cumprido as reformas exigidas pelo COI, a IBA ficou mesmo sem a gestão do boxe a nível mundial, uma decisão confirmada em abril deste ano depois de o Tribunal Arbitral do Desporto ter rejeitado um recurso interposto pela IBA. Há agora uma nova entidade que administra o boxe a nível mundial, a World Boxing, que já se colocou ao lado do Comité Olímpico.