Enviado especial do Observador em Paris, França

Ao ter dois corredores para as provas de ciclismo de pista, as várias equipas presentes nos Jogos distribuíram os seus elementos consoantes as características, os momentos e o histórico dos principais corredores. Uns, a olhar para o global, preferiram apostas em não desfazer a dupla no madison mesmo que isso prejudicasse o indicado para a competição de omnium. Outros, como Portugal, tiveram de tomar outra decisão: com Iúri Leitão na condição de campeão mundial de omnium, e perante a inevitabilidade de deixar “cair” alguém, a opção passou por desfazer a habitual dupla dos irmãos gémeos Oliveira, Rui e Ivo. O primeiro ficou na pista para o madison, o segundo ficou na bancada a apoiar a nova dupla. E o “milagre” aconteceu mesmo.

Melhor, não se pode falar de um “milagre”. A medalha de prata de Iúri Leitão foi tudo menos um milagre, tendo em conta os resultados internacionais que ia alcançando na pista apesar de fazer também estrada na maioria do tempo (ao serviço da Caja Rural). E agora, o que se podia esperar? As conversas iam garantindo que Rui Oliveira estava numa super forma, que Iúri Leitão estava a assimilar da melhor forma o pódio que tinha alcançado na quinta-feira mas que seria muito complicado chegar às medalhas caso se confirmassem todas as indicações que tinham sido deixadas pelos outros conjuntos. Havendo menos esperança talvez do que no omnium, que foi uma aposta mais declarada, não deixava de haver esperança. E fez sentido.

Para isso, acabou por imperar uma conjugação cósmica, latente sobretudo nas últimas 30 voltas. Se antes parecia que Portugal não conseguiria mais do que lutar por um diploma, a partir daí o barómetro de toda a esperança foi crescendo, crescendo e crescendo até ao ponto mais alto. Antes do último sprint pontuável, a dupla nacional já tinha conseguido uma medalha tendo em conta a improbabilidade de alguém conseguir somar os 20 pontos dando uma volta de avanço; aí, imperou o coração, a capacidade e o momento nacional, com a conquista de mais dez pontos (a pontuação é a dobrar na última contagem) que carimbaram não só o pódio mas também uma histórica medalha de ouro para o ciclismo de pista e para Portugal.

Ao todo, e apesar desse início com apenas oito pontos nas primeiras 15 contagens, Iúri Leitão e Rui Oliveira somaram um total de 55 pontos, mais oito do que uma Itália que perdeu também a vitória após ter andado na liderança com a queda de Simone Consonni (que na véspera vira a irmã Chiara a ganhar o madison com Vittoria Guazzini) quando fazia a passagem com Elia Viviani e mais 14 do que a Dinamarca de Niklas Larsen e Michael Moerkov. Também os escandinavos beneficiaram da autêntica loucura nas últimas 30 voltas no Vélodrome de Saint-Quentin-en-Yvelines, entre deduções de pontos a Bélgica e França e os protestos de Grã-Bretanha e Espanha. De trás para a frente, Portugal percebeu o jogo para fazer depois o xeque-mate.

Depois, quando Iúri Leitão passou a meta, teve início uma autêntica explosão. De festa, de sentimentos, de muita emoção. Na pista, nas bancadas, um pouco por todo o país. Com a épica vitória que voltou a mostrar a capacidade dos corredores nacionais em ler uma corrida, nunca entrar em preocupações desmedidas e andar sempre a acreditar no processo, houve um efeito “três em um” nestes Jogos de Paris-2024 num dia que até tinha começado com o sexto lugar de Fernando Pimenta no K1 1.000: o ciclismo de pista tornou-se a primeira modalidade fora do atletismo a ganhar uma medalha de ouro (curiosamente pouco depois de Pedro Pablo Pichardo ter recebido a prata do triplo salto no Stade de France), Portugal conquistou a primeira vitória em território europeu depois de Los Angeles, Seul, Atlanta, Pequim e Tóquio e esta passou a ser a melhor edição de sempre a nível de medalhas com um ouro, duas pratas e um bronze, superando o registo de 2020 que teve um ouro (Pichardo), uma prata (Patrícia Mamona) e dois bronzes (Pimenta e Jorge Fonseca).

Tudo entre um grau grande de improbabilidade mas com um nível muito alto que chegou ao patamar de excelência. Cerca de uma década e meia depois da construção do velódromo de Sangalhos, com a conjugação das infraestruturas possíveis com uma geração de ouro na modalidade, o ciclismo de pista conseguiu agora a sua real emancipação com tudo o que isso terá de reflexos no imediato e a médio prazo, provando que algumas vezes não é preciso muito para fazer mais do que os outros. Como tinha dito Iúri Leitão, apesar de não haver tantos ovos já se conseguia fazer um bolo além das omoletes. Agora, o menu está fechado e já se projeta uma era onde seja possível ver mais atletas, mais federados e mais valores a chegaram à modalidade. E há uma temperatura que define todos esses cozinhados, os 28º, a temperatura a que estava a zona da pista e que transforma tudo o resto depois num autêntico forno. Sem sangue, houve mais suor e muitas lágrimas.

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