Deambulando pelas manhãs em volta da quinta velha em Malicorne (norte da Borgonha), onde viveu em permanência nas últimas décadas da sua vida, Hubert Reeves, que morreu em outubro do ano passado, reparou no pequeno-grande mundo das flores silvestres que irrompem de muros, ruínas, à sombra das majestosas árvores que tanto apreciava, no prado em frente, na floresta, nas margens do lago da aldeia — ou até junto à janela do seu escritório… — e trocou a observação espacial, que foi o seu modo de vida e lhe rendeu fama pelos livros, pela análise botânica (“não se esqueça da sua lupa!”, p. 111), encontrando aí uma nova forma de encantamento. Chamando-lhe mesmo “um dos domínios mais admiráveis da natureza” — “jardins, prados, lagos e vegetação rasteira são os locais ideais para se estudar os [seus] segredos” (p. 153) —, dedica este livro àqueles que, “abrindo-se à beleza do mundo e ainda ignorando estas maravilhas florais, desejam enriquecer a sua vida com prazeres novos no decurso da sua existência” (p. 11). Admirável humildade a do cientista curioso que, a propósito de comuns margaridas, Bellis perennis ou sempre belas, diz e sublinho: “aqueles que estão dispostos a ajoelhar-se podem preparar-se para desfrutar profundamente da perfeição da forma que está prestes a ser-lhes apresentada” (p. 144).

A capa da edição portuguesa — que diverge da primitiva, feita pela Seuil em 2017, em que Hubert surge de bastão de caminhante em punho, à saída dum bosque — destaca essa satisfação pessoal do cientista, ali representado como figura atual incrustada num antigo gabinete de curiosidades, e que tomou dum haiku japonês o título e o propósito desta publicação: “Vi uma flor selvagem. | Quando aprendi o seu nome, | achei-a mais bela.” Uma dúzia de livros de uma bibliografia muito específica e a ajuda de dois botânicos, Francis Hallé e Nelly Boutinot (com quem publicou um livro infantil sobre biodiversidade), que lhe conferiram “garantia científica” (p. 249), permitiram a Reeves dar caminho a este roteiro que nos surge bastante valorizado por belas fotografias de Patricia Aubertin — na verdade, uma vizinha em Puysaye —, que para sermos justos merecia aparecer como a co-autora que de facto foi. O livro é também dela, pois nem a arte fotográfica por si mesma nem “cinco anos” (p. 249) de registos para este livro e o website que lhe corresponde são coisas de somenos. A Seuil decidiu assim e a Gradiva manteve, embora, por razões muito aceitáveis, tenha adaptado o subtítulo L’herbaire de Malicorne para O herbário do astrofísico.


Título: “Eu Vi uma Flor Selvagem. O herbário do astrofísico”
Texto: Hubert Reeves
Fotografia: Patricia Aubertin
Tradução: Teresa Henriques Goulão e Sara Veiga

Editor: Gradiva
Páginas: 250

O livro tem duas partes, “Florilégio” e “Considerações botânicas” (além dum glossário e duma bibliografia essencial), mas é a segunda, muito mais pequena, que nos dá toda a explicação pela qual Reeves decidou escrever sobre flores silvestres: a sua genuína preocupação com a biodiversidade, cuja crise gravíssima — em boa parte causa pelo recurso a herbicidas nos campos cultivados desde meados do século passado — está a pôr em risco equilíbrios conjugados que têm nas pequenas e desvalorizadas plantas selvagens um prodigioso sistema de sustentação e auto-regulação. “A biodiversidade genética — diz à p. 165 — é um seguro para a sobrevivência das espécies sob ataque”, mas todos os cuidados serão poucos: hoje, mesmo num trajeto por estradas secundárias, não se verifica a enormidade de insetos esmagados no vidro dianteiro do automóvel em que viajamos, ao contrário do que sucedia nas viagens de férias da nossa infância.

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Ao observar quarenta e tal plantas do círculo da sua casa no campo, o astrónomo deu-se conta — fascinado, pode dizer-se — como cada uma delas criou cores e odores capazes de seduzir moscas, abelhas e borboletas que depois levam para longe a polenização desejada, e como essa troca de favores desenvolve um sistema natural complexo porém regulado (“A colaboração entre as flores e as borboletas é uma das grandes proezas da natureza que nos deixam estupefactos”, p. 61). O vento também faz a sua parte na polinização, claro. Também formigas transportam sementes dos belos e rosados cíclames de Nápoles para a meia-sombra criada por árvores de grande porte (p. 83). Sequóias de 2-3 m apreciam que ervilhacas-dos-lameiros lhes cresçam ramos acima, “fornecendo azoto à sua base” (p. 185). As silvas “formam matas verdadeiramente intrasnponíveis, que as raposas e os coelhos escolhem para cavar as suas tocas. Corças e javalis dormem no meio delas. Os melros constroem ali os seus ninhos. Sentem-se a salvo de intrusos, protegidos pela multiplicidade de hastes espinhosas, atravessadas por utigas que são igualmente inoportunas para os caminhantes e caçadores” (p. 229).

Plantas e flores silvestres têm, além disso, estatuto reconhecido na farmacopeia e na culinária popular, das sopas às saladas, há crendices variadas sobre algumas delas, e a sua toxicidade danosa, quando ocorre, é conhecida e devidamente tomada em conta, como é bem o caso da tasneirinha jacobeia (Jacobea vulgaris), “o terror dos agricultores”, que “nas proximidades das coudelarias” (p. 163) sistematicamente a arrancam antes de florescer, por causa das suas substâncias para cavalos e gado. Em contrapartida, a vegetação densa criada pela clematite é “um bom abrigo para as aves” (Hubert recomenda mesmo a sua presença em qualquer “jardim que se pretenda ecológico”, p. 81) e a urtiga-maior (Urtica dioica) tem propriedades medicinais que fazem dela “uma verdadeira panaceia da fitoterapia”, e “jardineiros orgânicos recorrem a ela para cuidar e enriquecer as suas hortas, macerando-a num estrume malcheiroso, mas muito eficaz” (p. 137).

Hubert Reeves, seguindo o kai-ku inspirador, foi em busca de conhecimento sobre as flores selvagens que identificou em Malicorne, e variadas designações locais, regionais ou transnacionais são incluídas nestes verbetes que se afiguram como bonzais que ele foi cuidando com a devida minúcia e veneração. Dentre elas, muito em particular, está a tanásia (Tanacetum vulgare), pela qual admite “um sentimento de particular afeição” (p. 173), não tanto pelos seus “muitos serviços úteis” “como repelente contra carraças e mosquitos, para eliminar parasitas das colmeias ou na casota do cão para afastar as pulgas”, mas pelo “interesse acrescido” que suscita a entusiastas da matemática, porquanto as suas pequenas flores tubulares exibem “uma diposição geométrica que obedece a uma sequência matemática chamada Sequência de Fibonacci” (p. 174). Conhecimentos astrofísicos foram decisivos para se estabelecer a origem das estações do ano: “A obliquidade da Terra é de 23,4 graus; o seu eixo encontra-se, portanto, ligeiramente inclinado em relação ao eixo orbital. […] Se o eixo se tivesse mantido alinhado com o eixo orbital, a temperatura em qualquer ponto da superfície da Terra seria a mesma ao longo de todo o ano. Não haveria despertar primaveril de vegetação rasteira florida, não haveria a monumental coloração da folhagem de Outono. Bastaram algumas colisões para garantir a nossa felicidade perante o regresso das aves migratórias” (p. 196). E é por isso que o velho homem de ciência se compraz na vida em Malicorne: “a observação da natureza oferece um campo ilimitado de questões. Cada um pode tentar responder-lhes à sua maneira. […] Este é um dos grandes prazeres das caminhadas” (p. 228).

Seguramente um livro a distribuir pelos autarcas e serviços municipais de jardinagem e espaços urbanos de todo o país, tão furiosamente empenhados em destruir a biodiversidade gerada pelas flores espontâneas e abater ou amputar árvores, em vez de plantá-las às centenas… Bom proveito lhes poderia fazer — e o Natal está quase à porta!