Enviado especial do Observador em Paris, França
Se uma vez já seria complicado, duas pior ainda. No entanto, quem faz por gosto não cansa. Nunca cansa, mesmo que a bicicleta da glória se transforme por alguns segundos num problema. Depois de ter feito aquela subida na zona do velódromo onde estava a noiva, Iúri Leitão voltou a repetir o gesto. A mesma dificuldade em deixar escorregar a muleta de todos os sucessos até lá abaixo, ainda mais alegria do que a seguir à prata conquistada no omnium. Rui Oliveira andava em euforia, tal como o técnico Gabriel Mendes e todos aqueles elementos lá em baixo na zona das boxes já a correr para a entrada da pista. A festa depois do histórico ouro olímpico foi tudo aquilo de que o projeto desenhado na última década e meia: uma felicidade caótica.
Chegou a todos os cantos, das bancadas com amigos, familiares e Ivo Oliveira, irmão de Rui Oliveira que por norma costuma estar ao lado do gémeo e que teve também a sua quota parte de um sucesso de muita gente, à zona onde estava o primeiro-ministro Luís Montenegro e o resto da Missão. Se o sexto lugar de Fernando Pimenta de manhã no K1 1.000 da canoagem tinha sido um autêntico murro no estômago não tanto pela questão da cor das medalhas ou dos pódios mas pela frustração de ver um “super atleta” que merecia tudo quebrar de uma forma como nunca se tinha visto a 250 metros do fim nos 57 segundos mais longos de quem o conhece bem, o título olímpico do madison no ciclismo de pista teve um efeito regenerador para todos.
Com outra nuance: esta é boa gente e gente boa. A modalidade foi sempre daquelas que preferia agradecer o pouco que ia tendo em vez de andar sempre a reclamar por mais. Construiu o velódromo de Sangalhos, um passo essencial para que se pudesse sonhar com algo há uma década e meia impensável, foi projetando a formação de atletas dentro das condicionantes que tinha, encontrou uma geração de ouro que não deixa de fazer a sua vida principalmente na estrada, delapidou os diamantes para alcançar patamares que só eles e pouco mais acreditavam ser possível atingir. Falam bem, são atletas disponíveis dentro daquilo que são as suas constantes preparações para provas de estrada ou de pista (e com perfil de continuarem a ser mesmo depois de todo o sucesso atingido), fazem da humildade uma regra de ouro, nasceram para isto.
Omnium e madison, vertentes até aqui mais desconhecidas mas que passarão a figurar no grande dicionário das modalidades em Portugal, são sobretudo jogos de inteligência, de paciência, de sagacidade e de fé. Aqui também se respondem a perguntas como no Trivial Pursuit, mediante aquilo que todas as outras equipas forem fazendo dentro da estratégia inicial delineada. Aqui também se fazem apostas como no Risco, percebendo que existe um caminho para chegar à glória que pode entroncar em diferentes estratégias. Aqui também se joga com a sorte de calhar numa casa à frente ou atrás como no Monopólio, analisando aquilo que acontece em termos de dinâmicas das outras formações. Aqui pedala-se, acelera-se mas joga-se sobretudo um jogo de xadrez com estafetas em andamento. Tudo a uma velocidade que quase acaba por servir de ar condicionado para o calor que inevitavelmente em cada pavilhão por causa da temperatura ideal da pista.
Mais uma vez, tudo aconteceu como uma conjugação cósmica mas premiando a capacidade de se manterem fiéis a um plano inicial desenhado e à capacidade de compreensão do que se passa em corrida, como voltou a acontecer sobretudo no momento em que a aposta (conseguida) passou por acelerar para ir buscar os 20 pontos da volta de avanço, naquele que foi o momento chave para o triunfo. Se 48 horas antes Iúri Leitão teve uma atitude de ouro entre a prata que levou ao pescoço ao não querer atacar quando Benjamin Thomas caiu de forma aparatosa quando liderava a última prova do omnium, preferindo que o adversário voltasse à pista para jogar a última cartada em busca do ouro, agora teve um reconhecimento divino pela atitude.
Grande festa, passagem pela zona onde estava o primeiro-ministro com uma foto que rapidamente se tornou viral pela partilha nas redes sociais, um primeiro ponto de conversa antes da zona mista, o pódio. Iúri Leitão, de 26 anos, e Rui Oliveira, de 27, pareciam miúdos eufóricos com o que tinham acabado de alcançar, logo de início com uma entrada com dois toques com as mãos e o Siiiiiii à Cristiano Ronaldo que estava previamente combinado como equipa. Já com a medalha de ouro ao pescoço, sempre com o braço um por cima do ouro, estiveram sempre a falar antes de cantarem A Portuguesa de lágrimas nos olhos, pulmões abertos, vozes afinadas quanto possível e uma emoção que a certa altura colocou um travão no lançadíssimo Iúri Leitão.
No final, um suspiro quase como se fosse um sentimento de liberdade por deixarem de estar presos a algo que não passava de um mero sonho mas que se tornara real e mais um abraço apertado entre dois atletas que, não sendo irmãos como Rui e Ivo, têm quase esse grau de parentesco pela família que formam de forma diária nos treinos, nas provas, nas competições e, agora, na glória tão ansiada. Uma selfie tirada pela equipa da Dinamarca a todos os medalhados, a fotografia em conjunto entre as equipas de Portugal, Itália e também Dinamarca, a habitual imagem a morder a medalha. Rui Oliveira e Iúri Leitão tinham um pouco da Torre Eiffel ao pescoço mas o segundo não aprende e, depois da marca deixada na prata, repetiu a “dose”.
“Não sei, não sei… Estou sem palavras. A verdade é que isto não dá para… Não sei o que dizer…”, atirou Rui Oliveira, logo na primeira reação à RTP, visivelmente emocionado com o momento mais alto da carreira e um dos maiores pontos de destaque ao longo de 112 anos de participações nacionais nos Jogos. “É a nossa estreia nos Jogos. O Iúri fez um feito histórico há uns dias. À partida não estávamos top 7 de favoritos, é a verdade. Os italianos já nos conhecem bem mas arriscámos nas últimas 50 voltas. O Iúri disse-me para arriscar e eu disse ‘Espera mais um bocado, vamos esperar mais fadiga’. As últimas 30 voltas foram nossas. Tem piada, que há duas semanas fizemos uma simulação na Anadia, atrás da mota, e nas últimas 25 voltas fomos sozinhos e pensei ‘São duas voltas à morte, duas a acalmar, mais cinco minutos…’. Aqui nem olhei. Só queria pontos. Olhei e pensei que estava a viver um sonho nestas últimas voltas. Agora? Amanhã tenho de ir para a Dinamarca com a minha equipa, para correr na terça-feira, mas vou tentar falar com eles porque este é um momento único. Tenho de ir a Portugal para festejar com a minha família e os amigos”, confidenciou.
“Vou ser um bocadinho repetitivo mas se ainda não consegui digerir a medalha de quinta-feira, esta muito menos… Não posso mentir, de início vinha com muito boas sensações mas depois daquele nosso primeiro arranque senti-me bastante vazio, com as pernas muito más. Avisei o Rui que não estava num bom dia. Tentámos guardar-nos ao máximo porque sabíamos que a prova ia ser muito fatigante, podíamos tirar partido da parte tática. A paciência costuma ser um dos nossos pontos fortes e acabámos por surpreendê-los no final. Tínhamos isto programado e conseguimos. Não quero parecer frio, simplesmente estou incrédulo. Ainda não consigo digerir o que está a acontecer. São tantos anos, são tantos meses, são tantas horas de esforço contínuas, são tantos dias maus… Os desportistas de alto rendimento sabem que são 95% de dias maus e 5% de dias bons. Não sei bem se estou a sonhar ou se estou acordado…”, admitiu Iúri Leitão.