Em Pátria, publicado pela primeira vez em 2016, Aramburu desenhou a história de duas famílias que, na altura em que a ETA anunciou largar a luta armada, enfrentavam as sequelas do passado, com mortes, lutos, traições. Filhos da Fábula pega no mesmo momento histórico, explorando a vida política através de outro prisma, compondo mais um mosaico de um país.

Assim, no momento da narrativa, estamos em 2011, e Asier e Joseba, dois jovens, seguem para o sul de França com o objectivo de se converterem em militantes da ETA. São acolhidos por um casal francês, com quem têm problemas de comunicação, e esperam por instruções de acção. Pouco depois de chegarem, descobrem que a ETA anunciou o fim da luta armada. O problema é que não têm plano B: nem dinheiro nem armas nem hipóteses. Tomam a decisão – essa decisão tão cheia de juventude – de continuarem a luta por conta própria – um faz de ideólogo, o outro de militante que leva a teoria à prática.

A narrativa alimenta-se de tensões reais, de expectativas reais – ainda que pareçam ridículas e exageradas nos diálogos. É que, ao longo da leitura, não parece que é a técnica literária que é exagerada, antes a própria aspiração das personagens, num movimento que as compõe bem. E, enquanto o romance se desenvolve, assiste-se à expectativa de acção e de heroísmo como coisa acima da realidade, dos factos, da possibilidade: os dois insistem nas tentativas de glória em episódios que têm o seu quê de drama e de ridículo, num dos ingredientes mais magistrais do romance. Tanto discurso directo como indirecto são permeados por uma ironia permanente, em que texto e contexto se fundem. Cada personagem mostra, assim, o estado de um país, mais do que o seu estado anímico simplesmente, pegando na própria visão de heroísmo como atestado de pequenez mental, ridicularizando quem busca os píncaros.


Título: “Filhos da Fábula”
Autor: Fernando Aramburu
Tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra

Editora: D. Quixote
Páginas: 256

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Com Asier e Joseba, compõe-se um retrato social. Claro que a coisa nunca vem a bisturi, há sempre uma intenção na ironia. Ainda assim, não é de somenos saber sublinhar o ridículo de certas aspirações, nem de mostrar de que forma a subjectividade acaba por vergar a objectividade. Asier e Joseba são duas personagens com psique bem desenvolvida, densas sem serem teóricas ou panfletárias – isto no sentido literário, claro, uma vez que o são individualmente. Nos seus absurdos, vive a realidade – e Aramburu sabe fazer essa realidade voar.

A estética impõe a velocidade na leitura. A prosa é seca, visual, cheia de informação. Quem se mete numa frase tem de engolir as outras. Para mais, como cada elemento compõe também a psique das personagens, o interesse nos parágrafos seguintes adensa-se, ao mesmo tempo que o enredo vai agarrado. É que, de ridículo em ridículo, o cenário diverte, principalmente por vir de coisas sérias. De repente, as convulsões sociais parecem coisa ao longe, embora Asier e Joseba as tragam permanentemente para o discurso: é que, na quinta em que estão, a nova realidade política parece éter a permitir uma auto-construção heróica, dialéctica ou referencial. A realidade já parece coisa de plástico a ser moldado para permitir a teoria. E, como o sonho metia heroísmo, mesmo que este já seja inútil, há que persegui-lo.

É aqui que Aramburu põe o dedo na ferida, e esta ferida nem tem necessariamente de ter um cunho ideológico ou político. É em termos literários que a construção existe: ao invés de um texto ideológico, procura-se a carga humana, e esta poderia estar tanto em pretensos militares da ETA quanto em outros. Para os efeitos do romance, a ETA podia nem existir, podia ser jogo de ficção: o que interessa é este carácter quase universal, tão básico, tão comum, de alguém que procura um grupo e um caminho – ou de alguém que encontra num grupo um caminho –, e isto sem se transformar num arquétipo. Asier continua a ser Asier, Joseba a ser Joseba, e nenhum deles se extrapola de si mesmo, nenhum deixa de ser gente para se fazer sinédoque.

Com isto, é a própria ideia de seita que é posta a nu: ao criar-se o ideal e ao criarem-se as situações ideais para que o ideal sonegue tudo à volta, mesmo quando tudo é sonegado o ideal segue firme e vivo, trazendo à prosa – à vida – o anacronismo das acções e dos pensamentos, e criando uma espécie de redoma intelectual que tem sabor de absurdo para quem a vê de fora.

O contexto nunca se perde enquanto pano de fundo, uma vez que é essencial para a acção, sendo sua parte interna, constituindo o romance ao invés de o permitir somente. Ainda assim, não rouba o resto, uma vez que depressa quem lê se ata a Asier e Joseba. Finda a leitura, o romance sabe a coisa calibrada: há ritmo, há personagens que são gente, há ironia, há um humor fino e acutilante e, a atar tudo isto, há uma prosa que é só osso.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.