“Sou pouco dado a sentimentos, porque, como diz o Artaud, os sentimentos atrasam, e mesmo assim há aqui coisas tão fortes, tão belas que me deixam emocionado” é assim que Changuito (Mário Guerra) diz, no seu habitual jogo de desdizer, que “nem tudo está perdido” e que, apesar de muitas contrariedades, ele mesmo “não está perdido”  enquanto houver quem escreva como quem acrescenta, a este mundo infernal, um novo mundo possível. A sua livraria Poesia Incompleta, no bairro da Lapa, em Lisboa é a sua contribuição para essa utopia.

Aqui encontra-se de tudo um pouco, clássicos, canónicos, estreantes, promessas cumpridas ou por cumprir, premiados, famosos, ermitas, desconhecidos, esquecidos. Há as novidades e os fundos de catálogo, restos de editoras mortas, audiolivros. Se a revolução não será televisionada, a poesia muito menos, por isso, este é um espaço tranquilo, pouco iluminado, regressivo, deliciosamente antiquado. Entre mesas, estantes e recantos não há espaços “de destaque” pagos pelas grandes editoras, os livros vão-se arrumando por afinidades eletivas, relações de boa vizinhança, o gosto pessoal do livreiro, coisas que ele agarra, agita no ar e exclama, com sotaque do Brasil, “beleza”.

Perante este mar de palavras acordamos com Changuito que ele nos guiasse por alguns dos melhores livros de poesia que saíram já em 2024. Resmungando um pouco sobre “novidades” fechámos o negócio com dez livros deste ano e mais dois de 2023. Desta lista, feita quase exclusivamente de obras vindas de pequenas editoras independentes ou, como resume o livreiro “quando há dinheiro publicam, quando não há dinheiro não publicam”. Dito assim não parece dramático, mas na pratica é, porque muitas destas obras são objetos requintados, feitos com cuidado extremo; da escolha da gramagem do papel ao tipo de letra, dos universos poéticos aos tradutores. Mais do que livros de poemas, estes são projetos angustiados mas obstinados de expressar outras possibilidades de existir.

 Homens temporariamente sós

“Uma Coney Island da Mente”, Lawrence Ferlinghetti, (Antígona)

O poeta, pacifista e livreiro da geração Beat, quando as noites eram feitas de poemas, jazz e muito álcool. Editor de Bukowski e Bowles, publicou Uivo (1956), de Allen Ginsberg, que o levaria à barra do tribunal num processo histórico pela liberdade de expressão nos EUA. É autor de mais de quarenta obras, entre as quais se destacam este “Uma Coney Island da Mente” de 1958 . Quis libertar a poesia do “mofo da academia” e afirmava: “Não me dei conta de que era poeta, dei-me conta de que tinha algo a dizer”. Na Antígona.

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“Animal de Bosque”, Joan Margarit (Língua Morta/Flaneur)

Escrito a entrar de olhos abertos na morte, este Animal de Bosque, é o derradeiro livro de um dos grandes poetas ibéricos nesta espinha partida entre dois séculos. O catalão Joan Margarit, que Portugal descobriu com o maravilhoso Misteriosamente Feliz, morreu em 2021. No meses anteriores iniciou um diálogo com a memória, o amor, a intimidade. Por desejo da família do poeta, e em forma de agradecimento, o livro foi traduzido por Àlex Torradelas, Rita Custódio e Miguel Filipe Mochila, e publicado na Língua Morta, os tradutores e editores que o deram a descobrir no nosso país.

“Poesia”, Ernesto Sampaio (VS Edições)

Ernesto Sampaio, poeta herdeiro do Surrealismo, do Café Gelo e muito mais, um dos mais vivos pensadores da “única Real tradição viva”, mas também da cultura, da sociedade portuguesa, tradutor, desaparecido em 2001, viu, no final de 2023 ser publicada a sua obra ensaística e dispersa no volume Luz Central (Maldoror/Língua Morta). Agora é a vez da sua poesia ser reunida pela VS, num livro com um prefácio que faz jus à sua inteligência viva e vibrante, da autoria de Silvina Rodrigues Lopes

“O Poeta e o Social, 40 teses seguidas de exercício para mestres e mestrandos”,  Alberto Pimenta (Edições do Saguão)

Alberto Pimenta, nas suas águas furtadas na Mouraria, continua à janela a assistir ao espetáculo do “bom povo português” e a rir-se como ninguém. Este exercício é o poeta em grande forma no exercício da ironia como forma de sobreviver ao desconsolo. Marxismo, Chega, provérbios portugueses, fichas de exercícios para fazer na praia ao invés de sopa de letras e palavras cruzadas. Além do mais um belo objeto saído das mãos das Edições do Saguão.

“O Sermão de Noé Dentro da Arca e Outros Poemas”,  José António Almeida (Não Edições)

Changuito descreve o discreto poeta José António Almeida, como “um grego no Alentejo”, que, há mais de 30 anos, publica para para aqueles que se aventuram no desconhecido mundo dos que não escrevem para ser “famosos” mas para serem eternos. Este saiu em 2023, a edição está esgotada, mas o livreiro fez questão de o recomendar aos leitores do Observador.

Jovens poetas “punks de porcelana”

“E o Coração de Soslaio a todo o Custo”,  Maria Brás Ferreira (Offictium Lectionis Editora)

Maria Brás Ferreira faz parte da novíssima geração de poetas portuguesas que Changuito descreve como “muito lidas, muito espertas, nem sei o que dizer… já viste este título? O coração de soslaio?. Este é já o terceiro livro da poeta, mas o de maior fôlego. Nele há um retorno ao corpo, à sexualidade, a nudez que as gerações anteriores fizeram por esconder sob hábitos de convento, metapoesia, exercícios de linguagem sem eco.” (É desculpável que agora os ensinamentos/soem como insinuações de gozo,/numa hora terminal,/ numa aldeia longínqua,/sem pelourinho e matanças públicas:/sem notícias da morte, aligeirada
assim)”.

“Turbulenta Forma”, Maria Lis (Língua Morta)

Maria Lis (com S, porque com Z o Google envia-nos  para a Notícias Tv) é poeta e artista plástica. Este livro, o outro de 2023 que negociamos com Changuito), é já o terceiro da autora. São poemas e colagens para uma forma muito singular de fazer poesia. ” Desenhos muito delicados. Eu digo que ela é uma punk de porcelana, assim completamente squatter“, explica o livreiro”. Turbulenta Forma saiu na Língua Morta, responsável pela divulgação de outras promissoras poetas, Elizabete Marques e Andreia Faria.

Antologias, “poemas que nos encontram”

“Sob a Luz Feroz do Teu Rosto”, antologia poética de Eucanã Ferraz (Casa dos Ceifeiros)

Eucanã Ferraz é um dos poetas contemporâneo mais amados no Brasil, e é logo o primeiro que Changuito mostra, cheio de entusiasmo. “Belo, belo”. São poemas “de amores” sem que o amor nunca seja um estafado lugar comum. A edição é de Jorge Reis-Sá no seu projeto pessoal Casa dos Ceifeiros que junta à Glaciar.

“Uma só Carne Com a Noite”, antologia de poesia escolhida e traduzida por Vasco Gato (Língua Morta/Flaneur)

Acreditando que os poemas se difundem “pelo mundo através dos mais inusitados veículos, o poeta Vasco Gato traduziu e compôs esta antologia onde figuram dezenas de poetas de várias línguas e tempos.

“Antologia”, poesia de Salette Tavares (Tigre de Papel)

A poesia experimental de Salette Tavares ganhou uma edição transportável, pela Tigre de Papel, que, desde há alguns anos tem vindo a editar o seu extenso trabalho.

“Primeiros e Últimos Versos”, de António Nobre (Offitium Lectionis Edições)

António Nobre não foi apenas “Só”. Foram muitos outros poemas e a sua obra completa esta a ser recuperada pela Offittium Lectionis Edições. Este é já o segundo volume. “Antes de os esquecermos devíamos lê-lo”,  recomenda Changuito.

“Uma Morte Passageira”, Anise Koltz (Editora Exclamação)

Considerada a maior poeta judia luxemburguesa contemporânea, Koltz começou por escrever contos de fadas para crianças, antes de avançar pela floresta negra da poesia em língua alemã, francesa e luxemburguesa, hebraico e ladino. A poeta e tradutora Regina Guimarães e a editora Exclamação antologiaram agora alguma da sua obra que estava inédita entre nós.