É o primeiro romance de Jamaica Kincaid (Antígua, 1949-), publicado pela primeira vez em 1985: são oito capítulos que foram oito fascículos publicados na revista New Yorker. Lendo Annie John e lendo sobre a vida da autora, o leitor depressa entenderá os pontos de contacto entre romance e biografia, em especial mais lá para o fim: aos 16 anos, Kincaid foi enviada pela família para os Estados Unidos para tomar conta de crianças e enviar dinheiro para casa. Lá cumpriu a viagem, mas nunca enviou nada, e iniciou um percurso de libertação do passado. Fazendo-se outra, até de nome mudou. A literatura foi a porta para a mudança, para a auto-invenção, para a viragem para o futuro. Esta ideia de libertação do passado, de vida em direcção ao desconhecido, de recusa de aceitação de imposições, será crucial no desenrolar de Annie John.

Vamos então ao romance. Na Antígua, num ano desconhecido, Annie John vê o seu reflexo em plena adolescência. O espelho devolve-lhe uma verdade com que é difícil de lidar: envelhecida e infeliz, ali está ela, e logo num momento catalisador. Finda a infância, com a imutabilidade que ilude, há uma sensação de perda de paraíso que culmina em angústia existencial. A mãe, porto de abrigo, amor incondicional, passa a significar outro tipo de relação, e logo uma que sabe a traição: a vida até então conhecida transforma-se noutra coisa. Veja-se:

Muito tempo antes, quando não queria comer bife e me queixava por ser preciso mastigar tanto, ela mastigava os pedacinhos de carne na sua própria boca, antes de mos dar a comer. Quando eu detestava tanto cenouras, que só vê-las já me provocava um ataque de choro, a minha mãe cozinhava-as de todas as maneiras possíveis para as tornar saborosas para mim. Tudo isso tinha acabado. Parecia-me que nunca mais recordaria esses gestos com ternura.” (p. 45)

O romance pega, em grande parte, nesta relação, porque é a mudança da sua natureza que cria a tensão permanente, em episódios que vêm aliados às questões temporais, à infância sem espigas que vira adolescência tensa. Claro que parte do desequilíbrio emocional, da tensão que daí vem, deriva da questão que molda tudo: a mãe, amada, vira odiada, o que implica que toda a vida, passada e presente, seja ressignificada. Já Annie vai tendo uma espécie de vida dupla: boa aluna, é rebelde fora de casa, e muito do que faz, embora às escondidas, entraria em conflito com a mãe. Exemplo disso são as sucessivas paixões por amigas, tratadas sem recurso a sentimentalismos. É que Annie, rompendo qualquer papel de género que lhe pudesse ser colado, e isto num contexto em que as meninas deviam ser criadas para serem mães de família e donas de casa, é uma espécie de Don Juan disfarçado. Jura amor eterno às raparigas por quem se apaixona, sabendo que a promessa terá perna curta. Ou seja, na formulação, já há mentira, transformando a personagem num conjunto de nuances imprevisíveis e, sobretudo, impossíveis de catalogar.

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Título: “Annie John”
Autora: Jamaica Kincaid
Editora: Alfaguara
Tradução: Alda Rodrigues
Páginas: 192

À medida que o romance cavalga, o leitor segue um fluxo de consciência permanente, vendo, em simultâneo, a acção e o conflito interno, sendo que é este que estruturam a narrativa, mais do que o próprio enredo. Afinal, o romance faz-se sobre a percepção de Annie sobre o seu próprio crescimento. A vida avança, e vemo-la a mexer-se em cada página, mas sobretudo vemos a percepção de quem a vive. Há um permanente inconformismo com um texto social que parece sufocante, incluindo o contexto familiar, para o qual a relação com a mãe muito contribui. Mas o romance é mais do que isso: não diz só sobre mãe e filha, diz também sobre um país, sobre a forma como a cultura cria papéis e gavetas e impõe decisões.

Na pequenez de uma casa, atinge-se o universal: a relação entre mães e filhas, desde o ponto de totalização do amor e da segurança à ideia de falência; a transformação do imutável no mutável e o inevitável sabor a traição inerente; a crueldade da efemeridade das certezas, a pressão social para afunilar as vidas; a recusa de encaixar num futuro planeado por outros. Com isso, é a perda da infância que estrutura o romance: a figura central da mãe deixa de ser benigna e o paraíso do Caraíbe vai ficando cada vez mais denso e repressivo. Ao ver transformar o amor em raiva e rivalidade, passa a ser inevitável para a protagonista a separação com o destino a que, a priori, estaria destinada – ou condenada. De ano para ano, a ideia de vida afunilada começara a causar-lhe asco, inclusive no que toca à ideia de casamento como obrigação social. Ora, cortar com essa expectativa implica cortar com a vida em absoluto e, chegada à idade adulta, a partida para longe da ida implica uma ida que é para sempre, sendo o próprio movimento o luto do que deixa para trás.

Finda a leitura, há um corte com as amarras que é uma coisa muito pouco portuguesa. Ali não há saudade nem gente a lamber as feridas, há alguém a romper com o que a tolhia. E, sobretudo, há uma decisão pela esperança: ir para mudar a vida, cortar o elo com o que faz mal, que aqui é também cortar o cordão umbilical. O primeiro romance de Kincaid já adivinhava uma autora forte e com vontade de meter as mãos na massa. A prosa é lisa, limpa, deixando ainda um certo cinzentismo a ser descortinado por quem lê, e sobretudo por Annie, que a vive.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.