Por bizarra regra estabelecida, os jornais portugueses nunca noticiam, comentam ou criticam o que os outros publicam como colecionáveis de banca, mesmo quando há razoável motivo de interesse para isso. É bem o caso destes seis pequenos cadernos em caixa de cartão cru, com design arrojado de Maria João Ribeiro, que A Bela e o Monstro Edições de João Pinto de Sousa lançou em 2023 em parceria com o Público — e que agora relemos, a pretexto da Feira do Livro do Porto, que terminou no dia 8 de setembro. A curadoria editorial é de Luís Gomes, reputado alfarrabista em Lisboa e Óbidos, que optou por quatro monografias temáticas: O Porto dos Alfarrabistas, O Porto das Livrarias, Cafés Literários, O Porto dos Poetas; e dois registos historiográficos: O Porto Romântico e O Porto Contemporâneo — deste modo construindo, diz, “uma achega para um roteiro-inventário dos lugares, autores e livros, que ao revelar ligações tangíveis entre a cidade e a sua literatura é um guia para desvendar os mistérios da cidade e da sua vida” (1, p. 6).

Logo num primeiro instante, salta à vista a ausência dum “Porto dos Editores”, muito embora — e é bastante — a força e a originalidade das casas editoriais portuenses tenham sido, e ainda o sejam de alguma maneira, muito relevantes para a história literária portuguesa, porquanto sem editores propriamente ditos não há livros nem livreiros, apenas obras literárias por conhecer. Basta lembrar a Chardron-Lello, a Civilização (de Fraga Lamares, iniciada em 1881…), a Figueirinhas, a Inova — Oiro do Dia, a ASA (acrónimo de Américo da Silva Ameal), a Porto Editora dos dicionários, até a original e promissora Caixotim, de Paulo Samuel — ou a Afrontamento, fundada em 1963 e ainda tão persistente. A veia profissional do curador pesou demasiado nesta opção, que se aceita, mas estamos, em todo o caso, perante uma oportunidade perdida de fazer valer tributos muito próprios da cidade do Porto e de sublinhar, mais uma vez, o papel essencial dos editores — como não?! — na vida cultural e na história dos livros e da leitura.

Há, aliás, um exagero de circunstância — muito protocolar, até — da vice-reitora da Universidade do Porto, Fátima Vieira, segundo a qual “as livrarias alfarrabistas são os pulmões culturais da cidade” (1, p. 9). Seria preferível elogiá-las sobretudo como agentes duma “autêntica economia circular, em linha com preocupações actuais” (p. 10). E no Porto são cerca de vinte, todas elas resistiram ao fecho de livrarias históricas e agora enfrentam — ou partilham — a forte vaga do comércio em-linha de livros usados, o que veio aproximar o comércio do livro antigo e raro ao antiquarismo de arte, como sucede no Sótão da Tia Becas, na Travessa de São Carlos, 22, onde tem sala própria, a jeito de curiosidade (v. 1, pp. 79-80). Os melhores alfarrabistas são, isso sim, bons “conselheiros de colecionadores” — que os há, discretos em geral —, como se diz a propósito de Nuno Canavez, 88 anos de idade, da Livraria Académica, ou então, têm ofícios confinantes, como sucede a Paulo Ferreira, da In-Libris, ao mesmo tempo editor fotográfico e encadernador, com oficina nos fundos da loja, onde máquinas do século XIX convivem com gravadoras a laser, impressoras 3D e workshops com um veterano do ofício.


Título: “O Porto literário: um roteiro literário”
Organizador: Luís Gomes
Autores: Catarina Moura e outros
Editor: A Bela e o Monstro Edições
Design: Maria João Ribeiro
Páginas: 540

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Diferente destes, Herculano Ferreira, da Manuel Ferreira fundada por seu pai em 1954 (v. pp. 63-66), é um estimável organizador de catálogos e leilões de bibliotecas privadas que também prepara newsletters digitais de boa qualidade informativa e estética, enquanto a Modo de Ler tem à cabeça José da Cruz Santos (1936-), um editor, parceiro e amigo de escritores e artistas portuenses que por décadas fez edições de luxo pagas por bancos e farmacêuticas, e agora ali vende livros velhos ou algum refugo do que publicou. A Moreira da Costa, de frente para o Salão de Chá Aviz, na simpática rua do mesmo nome, “é a mais antiga livraria em atividade na cidade”, e vai na quinta geração. Se resiste ou não à acelerada gentrificação em curso, é o que um dia se saberá.

No caderno O Porto das Livrarias, o que mais se destaca é o enorme contraste entre a beleza e opulência arquitetónica da Lello e da Latina (outrora Tabacaria Africana) e a banalidade ou feiura da larga maioria dos outros espaços comerciais, mostrando que o “velho Porto” não teve ainda equivalentes contemporâneos à sua altura — e o mesmo pode ser dito quanto aos Cafés Literários, tema do caderno 3, que considero o mais interessante e completo do colecionável — e não preciso de citar Georges Steiner para mostrar seja o que for. Álvaro Magalhães, numa espécie de prefácio, chama-lhes mesmo, em título, “lugares que se tornaram míticos pela ação das tertúlias” (p. 6), devidamente seccionadas por gerações ou ideias estéticas ou políticas, e que do século XIX ao XXI desapareceram paulatinamente, delas ficando uma forte memória destilada em registos literários de diferente efeito e estofo, que cronistas portuenses ainda tentam restituir.

É esta, julgo saber, a grande riqueza urbana e cosmopolita da cidade do Porto. O Café do Camanho (“um espanhol de grandes suíças, atencioso e simpático”, 3, p. 26), onde, diz-se, Raul Brandão também parou, fechou em 1917. O Café Lisbonense, na Rua do Bonjardim, 40-50, é indissociável do advento do positivismo e do realismo no Porto. O Café do Chaves, a São Bento, “tornou-se a morada mais habitual da tertúlia do filósofo e professor Leonardo Coimbra”, que também imperou no Excelsior, hoje loja e galeria Leica. No Palladium, em Santa Catarina, Adolfo Casais Monteiro falava com os seus amigos da revista Presença, de Coimbra. No magnífico Rialto, “exemplo de modernidade incomparável” (p. 78), que abriu em 1944 e fechou em 1972, encontravam-se à mesa do café os poetas Egito Gonçalves e Luís Veiga Leitão, entre outros. Nos anos 90, Mário Cláudio invocou o convívio de escritores no Majestic num texto ignorado pelos autores deste caderno e certamente pelos turistas que ali vêm encontrar um símile “provinciano” das cidades europeias donde provêm. Esqueceram-se também do Café Âncora d’Ouro, na Praça da Parada Leitão, 45, conhecido como Piolho, que como nos mostra Porto: Lojas de Outrora e de Agora de Isabel Gomes e Rita Magalhães (Afrontamento, 2023, p. 290) tinha uma tertúlia onde pontificava Manuel Resende (1948-2020), poeta e tradutor de poetas que talvez um dia — justiça seja feita! — receba o nome de uma tília no jardim do Palácio de Cristal, em tributo à sua obra excecional. É erro grave ter sido esquecido no caderno O Porto dos Poetas — que tem toda a razão de ser, mas exagera na frenética idolatria às suas figuras tutelares, quase jurássicas, como é bem típico da cidade, mesmo quando as melhores se transferiram para Lisboa ou mais longe, e aí ficaram para sempre, de Casais Monteiro a José Gomes Ferreira ou de Sophia de Mello Breyner Andresen a Vasco Graça Moura.

Como nota bastante positiva fica, todavia, a evocação de Ana Hatherly (1929-2015) e a “semente que a cidade deitou por via do Barroco” (4, p. 20) àquela que se afirmou como uma das mais poderosas estudiosas dessa estética na sua intensa versão luso-brasileira. Ângelo de Lima, Daniel Faria, António Nobre e Pedro Homem de Mello — cuja obra está finalmente a ser reeditada pela Assírio & Alvim — não são esquecidos, e o cineasta António Reis é visto também sob esta lente, o que merece elogio, como também o merece o registo final de depoimentos de Daniel Jonas, João Luís Barreto Guimarães, Pedro Eiras e outros. Bom critério, também adoptado para a literatura do século XXI.

O Porto Romântico e O Porto Contemporâneo completam o roteiro, sugerindo agora aos leitores que cada texto dedicado a um escritor seja lido num lugar específico (por exemplo, Júlio Dinis “no Freixo, a ver o Douro”, Agustina Bessa-Luís na Rua do Gólgota, onde viveu; Ramalho Ortigão “algures pela Lapa”). Ambos são apresentados a traços muito largos por Isabel Pires de Lima, professora emérita da Faculdade de Letras do Porto e durante três anos ministra da cultura dum governo de José Sócrates, e os textos de Catarina Moura sobre os escritores representativos destes períodos, entre pinceladas de biografia e aproximações literárias, denunciam demasiado o público generalista a que este colecionável se dirige, enfraquecendo a abordagem crítica, mesmo que por citação abundante de interpostas pessoas. Não basta reconhecer que, “sem pretensões de criar curtas biografias ou análises literárias expressas, o leitor tem na mão, antes de qualquer outra coisa, um guia do Porto. Os cicerones são as obras e as vidas dos seus ficcionistas” (6, p. 12), como quem se justifica ou desculpa, antecipadamente, da superficialidade dos textos adiante dados a ler, alguns deles confrangedores até, como os dedicados a Pascoaes, Ramalho e Brandão, além de outros. É pena.

Seja como for, trata-se de uma iniciativa editorial de mérito, que ainda não foi estendida a Coimbra e Lisboa, como terá sido imaginado. É que, uma vez mais, a realidade ultrapassa a ficção…