Nuno Miguel Silva Duarte é o vencedor do prémio Leya 2024, com o livro Pés de Barro. O anúncio foi feito esta quarta-feira, na sede do grupo editorial. A decisão foi tomada pelo júri presidido por Manuel Alegre. O escritor sucede assim a Victor Vidal, distinguido no ano passado por Não Há Pássaros Aqui.
Nas palavras do júri: “Pés de Barro tem como pano de fundo a construção da primeira ponte sobre o Tejo, em Lisboa, e nos um retrato do Portugal dos anos sessenta. Por um lado, a formação de um exército proletário para a construção da ponte, por outro as primeiras partidas do exército para a guerra colonial. Obra que atualiza a tradição do romance político-social, Pés de Barro polariza o seu realismo histórico no quotidiano de um pátio em Alcântara e nas razões de viver dos que nele se acolhem. Através de movimentos com diferentes horizontes de sentido para concretizar esse signo de logro de desastre em que a ponte se construiu, Pés de Barro encaminha-se para o anúncio metafórico do 25 de Abril”.
Nuno Miguel Silva Duarte nasceu em Sintra, é “publicitário há quase trinta anos e talvez escritor nas horas vagas”. Ao saber que tinha vencido o prémio, a reacão do autor “foi de choque e genuína surpresa”, sendo que pediu “alguns momentos para se recompor” após a chamada de Manuel Alegre, afirmou o diretor geral de edições da Leya, Pedro Sobral.
Esse sentimento foi reforçado em conversa telefónica com o Observador. “Ainda estou a tentar encontrar o chão, porque foi completamente inesperado. É incrível, é totalmente incrível ser distinguido com um prémio destes”, afirma. Como acontece em tantos casos, Nuno Miguel Silva Duarte já tinha uma relação antiga com a escrita. E se esta não foi a sua primeira tentativa em conceber um romance, foi aquela em que não teve “vergonha de o apresentar a alguém”.
“A literatura é um processo de aprendizagem. Já escrevi outras coisas, porque ninguém chega a um livro que por acaso ganha um prémio destes sem ter tentado aprender muito antes. Estive pelo menos 10 anos realmente a experimentar e a ver como é que se fazia. Claro, escrevi outras coisas que considero que não têm qualidade, portanto nunca na vida sairão do computador. Acho que só a minha mulher é que as leu”, conta ao telefone.
Explicando como chegou a esta história, Nuno Miguel Silva Duarte diz que tudo começou com “histórias deliciosas” que ouviu contar de pátios operários de Lisboa. “Achei aquelas histórias material de literatura, e isso levou-me para uma época anterior à nossa. Ao recuar no tempo, fui parar, obrigatoriamente, ao Estado Novo e à construção da obra mais emblemática desse regime, a ponte sobre o Tejo”, adianta.
Ora, no seu entender, não só fazia sentido ligar a conceção da ponte ao quotidiano dos bairros operários, como também ao deflagrar da Guerra Colonial. “Naquela altura, ao mesmo tempo que se construía uma ponte, construía-se uma guerra. E, curiosamente, os paquetes que iam carregados com miúdos para a guerra saíam do mesmo sítio em que se construía a ponte — a uns metros de distância, mas poucos. Esse paradoxo foi uma coisa que me interessou bastante”, continua.
O facto de uma obra com este ângulo ser editada e premiada no ano em se celebram os 50 anos do 25 de Abril, frisa, foi uma “coincidência feliz”. No entanto, Nuno Miguel Silva Duarte não esconde a esfera política deste romance, especialmente — como destaca — na ressaca da vitória de Donald Trump nas eleições dos EUA.
“Todos nós temos uma tendência para olhar para o passado — seja ele qual for, não estou a fazer juízos de valor — e romantizá-lo, só ver as coisas boas, etc. E a ponte sobre o Tejo, em particular, é muito utilizada por uma determinada franja saudosista do Estado Novo, que defende que as pessoas e o governo eram muito sérios e não se gastava dinheiro, sendo que a ponte é usada como exemplo dessa governação séria”, começa por explicar.
No seu entender, apesar de gostar da ponte — “é algo que me diz muito porque era por ela que passava para ir de férias e acho-a um objeto bonito”, comenta entre risos —, é preciso sublinhar que a sua concretização, tal como o passado, têm “pés de barro”. “Há uma série de coisas que aconteciam por baixo da ponte e na margem da ponte que são chocantes e que têm de ser recordadas na mesma medida em que se recorda uma ponte que foi acabada antes de tempo. As coisas têm de ser postas na mesma balança”, defende.
Um prémio “vivo”
O prémio Leya, no valor de 50 mil euros, é atribuído desde 2008, para distinguir um romance inédito e em português. Segundo o presidente do júri, o poeta e escritor Manuel Alegre, esta foi a edição mais concorrida de sempre, tendo recebido 1.123 originais, provenientes de 15 países. Mais de metade foram submetidos a concurso a partir do Brasil, com 708 participações, seguindo-se Portugal (350), Moçambique (19) e Angola (15).
No entender de Manuel Alegre, tais níveis de participação demonstram que o prémio “está vivo e que as pessoas concorrem”. “Tem criado novos leitores e tem revelado também novos autores, uns com mais impacto do que outros, como é natural”, afirmou ao Observador, já depois da apresentação.
Seguindo a mesma bitola, Pedro Sobral afirmou aos presentes durante a sessão que o recorde de participações enche a organização de orgulho e “testemunha a força da literatura em língua portuguesa”. “Uma literatura viva, diversa e capaz de ultrapassar as próprias barreiras da língua. Só o Brasil representa 62% das submissões, o que mostra que, apesar da distância, existe uma ligação forte e visceral entre as culturas portuguesa e brasileira, e o eco além-fronteiras que este prémio já tem. Este intercâmbio cultural, que proporciona um diálogo que não apenas enriquece a literatura, mas aproxima nações e lembra-nos da universalidade das palavras em português, com ou sem sotaque”, declarou.
Na senda desse discurso, o diretor geral de edições da Leya afirmou ao Observador que o prémio “está a cumprir o seu papel”, por um lado ao “ser um catalisador de novas vozes”, e, por outro, ao “ter esta abrangência do que é o trabalho na língua portuguesa, mostrar que não precisamos de barreiras linguísticas, não precisamos de acordos ortográficos artificiais que colocam essas próprias barreiras entre as várias comunidades e da forma como o imaginário acaba por ser muitas vezes comum, mas simultaneamente diferente”. “Olhe-se para aquilo que tem sido o êxito do Itamar [Vieira Junior, vencedor de 2018], quer no Brasil, quer cá. Olhe-se o êxito que foi o Afonso Cabral ou o João Pinto Coelho [vencedores de 2014 e 2018, respetivamente]. Temos, de facto, já um histórico e um caminho que mostra que o prémio tem seguido o seu propósito”, defende.
Uma das particularidades do Prémio Leya é que a autoria dos romances é desconhecida ao longo de todo o processo de leitura e avaliação — ”o título do livro vencedor, e respectivo autor, selado num sobrescrito, apenas é conhecido depois de tomada a decisão do júri”, realça a nota de apresentação. Apesar do processo não dar azo sequer a formas de descriminação por parte do júri, não deixa ainda de ser curioso que tenha apenas havido uma mulher vencedora desde a génese desta iniciativa — Gabriela Ruivo Trindade, com Uma Outra Voz, em 2013.
“É uma coisa com que nos interrogamos todos os anos. É extraordinário”, admite Pedro Sobral. A seu ver, é difícil aferir as causas de tal fenómeno, até porque assenta “numa série de paradoxos”. “Por exemplo, 95% dos leitores destes originais são mulheres. Porque isto é lido pela equipa editorial da LeYa e basicamente 95% da nossa equipa são mulheres. Portanto, não há aqui um enviesamento dos leitores”, revela.
Por outro lado, também não é possível conhecer a proporção entre homens e mulheres que participam, porque a própria equipa não determina a origem de todos os pseudónimos que submetem manuscritos. “A única coisa que sabemos é a nacionalidade, que é o único campo que nós obrigamos a preencher. Mas claramente não é pela leitura, nem pela forma e também pela deliberação do júri”, argumenta.
“O que sempre procuramos é um grande livro. Somos neutros relativamente ao género ou à religião dos autores, àquilo que é a sua agenda social, cultural e económica e fazemos o mesmo com os tradutores e com os revisores. Procuramos, acima de tudo, uma qualidade intrínseca e todo o processo está montado para que isso aconteça. Porquê? Porque basicamente são as equipas editoriais que têm liberdade absoluta de editar aquilo que bem querem. Não há nenhum tipo de imposição, condicionamento ou questões levantadas pelas equipas de gestão ou equipas até ligadas às áreas fora da edição, como marketing, comercial, etc… Portanto, como não existe isso, e estamos única e exclusivamente focados no original, não temos nenhum tipo de leitura de que isso aconteça”, continua.
Questionado se a causa para a diminuta percentagem de mulheres galardoadas poderá estar numa certa inibição por parte de escritoras em participar, Pedro Sobral coloca-se na posição de presidente da APEL (Associação Portuguesa de Editores e Livreiros) e afirma que “não existem dados que permitam aferir isso nem o seu contrário”. “Eu digo sempre a mesma coisa: se queremos ter essa conversa e essa narrativa, que eu acho que devemos ter, então façamos um estudo alargado para perceber que isso acontece”, sugere. Na sua experiência, não há discrepância entre autores e autoras publicadas. “Pelo contrário, há muitas mulheres que são editadas. Mais ou menos que homens? Não sei, lá está, precisamos de dados”.
Estes são os autores e livros distinguidos até agora com o Prémio Leya:
- O Rastro do Jaguar, Murilo Carvalho– 2008
- O Olho de Hertzog, João Paulo Borges Coelho – 2009
- O Teu Rosto Será o Último, João Ricardo Pedro – 2011
- Debaixo de Algum Céu, Nuno Camarneiro – 2012
- Uma Outra Voz, Gabriela Ruivo Trindade – 2013
- O Meu Irmão, Afonso Reis Cabral – 2014
- O Coro dos Defuntos, António Tavares – 2015
- Os Loucos da Rua Mazur, João Pinto Coelho – 2017
- Torto Arado, Itamar Vieira Junior – 2018
- As Pessoas Invisíveis, José Carlos Barros – 2021
- A Arte de Driblar Destinos, Celso Costa – 2022
- Não há Pássaros Aqui, Victor Vidal – 2023