Dois bancos de madeira e um cartaz é o palco da conversa na praça lisboeta do Martim Moniz, do bangladeshiano Shaik Abumian com a brasileira Lorena Garrido, atriz de uma companhia teatral, que utiliza esta performance para ouvir testemunhos.
Shaik Abumian está em Portugal há dois anos e não conhece a peça “Na boca do tubarão”, da companhia Teatro do Imigrante que estreia este sábado mais uma temporada, mas elogia a iniciativa de ouvir pessoas no Martim Moniz.
“Queremos ser ouvidos, queremos que olhem para nós. Somos pessoas” disse Shaik Abumian, em declarações à Lusa.
Abumian não tenciona assistir à peça que se foca na viagem dos imigrantes para a Europa. A sua atenção está virada para arranjar emprego num país de que “gosta muito”, mas “paga mal”.
“Não há emprego. Pago 200 euros por um quarto e ganho 500. É difícil viver cá, não por causa dos portugueses que são muito bons, mas por causa da economia”, desabafa, embora recuse voltar ao Bangladesh.
“Aqui é difícil viver, mas podemos sonhar, pensar em coisas do futuro. Lá, não é possível”, explicou, pouco depois de ter falado com Lorena Garrido, a artista que teve a ideia desta performance artística quinzenal.
Depois de “Na Boca da Tubarão”, a companhia composta maioritariamente por imigrantes brasileiros quer levar ao palco a peça “Fábrica”, sobre o trabalho dos estrangeiros.
Para tal, procura falar com imigrantes e “fazer uma recolha documental, sempre que possível gravada”, que poderá ser utilizada para a construção da peça ou para um “documentário futuro”, explicou Lorena Garrido.
Este contacto também visa retirar os atores da “sua própria bolha” e conviver com a realidade de outros imigrantes, que têm mais problemas de integração.
“Somos todos imigrantes, de um modo ou outro” e “todos procuramos um lugar onde nos possamos sentir bem”, disse a artista, que destaca a importância deste diálogo também para ajudar outros imigrantes.
“Muitas vezes são dúvidas burocráticas, outras vezes são só desabafos. E é importante ouvirmos”, salientou.
O paquistanês Manzour está em Portugal há dois anos e já tem a sua situação regularizada. Primeiro esteve em França e quando soube que as autoridades portuguesas permitiam a regularização a quem trabalhasse no país decidiu viajar para cá.
“Nunca tinha pensado em Portugal. Hoje não quero sair daqui, não quero ir para a França ou para outro sítio”, disse, destacando a “segurança” e a “tolerância” que existe no país.
Portugal “deu-me uma nova vida e mostrou-me a bondade das pessoas”, afirmou, embora admitindo que o sentimento em relação aos imigrantes esteja a mudar.
Mas a culpa, diz, é do elevado número de estrangeiros. “Foi demais e falo isso até em relação a mim. Portugal é um país pequeno e foi tudo muito rápido e de repente. Isso cria medo e nós imigrantes temos de mostrar aos portugueses que não precisam de sentir medo de nós”.
Muçulmano praticante, vestido com um casaco dos New York Jets, Manzoour diz que as práticas religiosas deveriam ser praticadas só em privado — “sejam elas de que religião forem” — e elogia o papel das mulheres e da comunidade LGBT em Portugal.
“Vocês não notam, mas vocês são um exemplo de tolerância. Eu hoje sou mais tolerante do que era, porque também aprendi com vocês”, afirmou.
O encenador Marcelo Andrade concebeu a peça “Na boca do tubarão” ainda no Brasil vendo pela televisão a chegada de imigrantes de barco do Mediterrâneo.
“Foi há muito tempo, nem sonhava em sair do Brasil e que iria ser emigrante”, recorda.
Em Portugal desde 2019, onde estudou doutoramento, Marcelo Andrade hoje trabalha em projetos em bairros sociais, mas sempre quis retomar a atividade teatral que tinha no seu país.
No entanto, “muitos artistas estrangeiros não se conseguem introduzir na cena artística” portuguesa, seja pela língua ou pelos hábitos diferentes, e coletivo artístico Teatro do Imigrante nasceu após uma oficina criativa.
A ideia de adaptar a peça à realidade portuguesa tornou-se evidente para Marcelo Andrade. “Incluí novas ideias, a minha própria experiência de imigrante, os problemas, os desafios” ou a circunstância de “sentir na pele o racismo e a xenofobia”.
“Foi um processo muito interessante” porque a “arte encontrou a realidade concreta”, recordou o encenador, que acredita no ativismo através do teatro.
“Eu faço um teatro político, da política do quotidiano” e “acredito muito num teatro que deve reverberar o que se passa na sociedade. Ele só funciona se falar sobre as questões sociais”, defendeu.
O encenador quer tratar o tema da imigração como uma trilogia, primeiro sobre a travessia, depois sobre o emprego, terminando com os problemas no acesso à habitação.
A experiência desta performance cumpre esse objetivo de “colher relatos sobre o imigrante e o trabalho”.
Visa “criar um diálogo. Parece pequeno, mas pode ser um contributo importante para nós e para quem fala connosco”, explicou.
Shaik Abumian falou sobre as suas dificuldades com Lorena mas não acredita que a arte o salve.
“Eu preciso de um emprego a sério. E preciso que a economia de todos nós, aqui em Portugal, melhore”, desaba, instantes antes de se despedir da Lusa para ir lavar louça num restaurante em Alfama, para substituir as folgas de outro imigrante.
A peça “Na boca do Tubarão” está em cena na Sociedade Filarmónica Recordação D’Apolo, em Lisboa, até 24 de novembro.