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Vale de Milhaços: a pólvora na outra banda

Um livro para contar a história de uma fábrica, de uma indústria e de uma geografia, mas também para servir de alerta urgente sobre a nossa relação com o património e a arqueologia industriais.

O tempo transcorrido parece excessivo para o que ali precisava de ter sido feito para tornar este complexo industrial desativado e musealizado um ponto de turismo especializado ou um centro interpretativo e polo histórico-educativo
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O tempo transcorrido parece excessivo para o que ali precisava de ter sido feito para tornar este complexo industrial desativado e musealizado um ponto de turismo especializado ou um centro interpretativo e polo histórico-educativo

O tempo transcorrido parece excessivo para o que ali precisava de ter sido feito para tornar este complexo industrial desativado e musealizado um ponto de turismo especializado ou um centro interpretativo e polo histórico-educativo

Com este livro, os autores e a autarquia do Seixal pretendem colocar em evidência um precioso complexo industrial local, lançando um “alerta” — parece-me ter mais um propósito de alarme — para que possa ser devidamente conservado, classificado e valorizado até internacionalmente, em função da sua raridade: “um conjunto único no mundo com valor suficiente para se promover e ser considerado Património da Humanidade”, escreve na contracapa o catalão Eusebi Casanelles Rahola, membro do Board do Comité Internacional para a Conservação do Património Industrial e do Comité de Património Industrial e Engenharia da Europa Nostra, que também assina o prefácio — opinião coadjuvada por dois presidentes da Associação Portuguesa para o Património Industrial, José Manuel Lopes Cordeiro e Leonor Plácido de Medeiros. António Santos Carvalho, um dos autores deste livro, constata que “este património único no mundo exige uma intervenção muito urgente de preservação”, e isso é algo que fica muito claro em boa parte das fotografias exibidas, e já seis anos foram passados.

Em 1998, quando Casanelles Rahola visitou pela primeira vez o complexo da Sociedade Africana de Pólvora na Amora, arredores do Seixal, encontrou “a última fábrica europeia” suportada por máquina a vapor ainda em funcionamento, “um tesouro vivo”, nessa altura “em excelente estado de conservação”. Apesar disso, a atividade fabril chegaria ao fim pouco depois. Apenas três anos passados, o património cultural e industrial da Fábrica de Pólvora foi colocado sob a tutela do Ecomuseu Municipal do Seixal, criado em 1982. Os proprietários da fábrica doaram ao Município edifícios e equipamentos de produção in situ em janeiro de 2001, e um ano depois o espólio documental remanescente (p. 43). Iniciado em 1999, o processo de classificação da fábrica como monumento de interesse público, apresentado ao IPPAR, só foi concluído em dezembro de 2012 — treze anos depois! —, e foi então delimitada a zona especial de proteção, que havia sido instituída em… 2007 (p. 44). Entretanto, em 2003 um incêndio destruiu a oficina da secagem a vapor da pólvora (fot. p. 124), e no ano seguinte o novo proprietário dos terrenos fez demolir o bairro operário com capacidade para alojar 60 famílias — que a Câmara havia preterido na proposta de classificação patrimonial —, apesar do “incontestável interesse” daquele “singular núcleo habitacional de Vale de Milhaços”, que a boa fotografia na p. 25 exibe. Em 2015, a musealização do Circuito da Pólvora Negra foi inscrita no Plano Diretor Municipal do Concelho do Seixal, mas o circuito da Pólvora Seca da Fábrica de Pólvora de Vale de Milhaços, com visitas guiadas por um ou dois dos seus antigos trabalhadores, já integrados no Ecomuseu, só teve uma primeira planta desenhada quatro anos depois (v. p. 50). Também a bibliografia essencial sobre a fábrica — Jorge Custódio, Margarida Pogarell, mas sobretudo Graça Filipe — data apenas de 2012 em diante. O próprio livro tem prefácios datados de 2021, e a maioria das fotografias é de 2018-19. E é reconhecido que ainda “está em curso o projecto de musealização” (p. 11). O balanço a fazer-se — uma década depois — não parece, portanto, ser muito favorável aos melhores créditos do Município governado pelo Partido Comunista desde 1976.


Título: “A Fábrica de Pólvora de Vale de Milhaços, do século XIX ao século XXI. Da indústria a vapor a património para o futuro”
Autores: Graça Filipe e António Santos Carvalho
Design: Overshoot Design
Editor: Caleidoscópio e Câmara Municipal do Seixal 
Páginas: 192

A fábrica tal como hoje existe não é a original, construída em 1895 e a laborar no ano seguinte, “treze barracas de tijolo cobertas com telhas de zinco” (p. 15) servido pelo porto fluvial da Quinta do Rouxinol, umas centenas de metros afastado. Uma grande explosão numa oficina, logo em Abril de 1897, vitimou nove operários e destruiu parcialmente a fábrica (O Século dedicou uma página inteira ao desastre), levando a uma rápida reconfiguração do complexo distribuído por 20 hectares. Henrique Burnay era um dos sócios da primitiva Sociedade Africana de Pólvora, e terá sido decisivo na ágil aquisição de maquinaria Krupp. Novos edifícios foram então construídos com três grossas paredes exteriores de alvenaria nas direções que apontam para outras oficinas, afastadas uma centena de metros, e uma quarta parede, toda em madeira, encimadas por um telhado leve, em chapas zincadas, para que em caso de explosão o contágio e o prejuízo fossem os menores possível. No ano seguinte a SAP já conseguia expedir 12 mil barris de pólvora negra para minas, pedreiras e espingardas de caça em Angola. Um vaporduto aéreo montado sobre pilares de tijolo conduzia o vapor desde a casa das caldeiras, no centro do complexo, até à estufa de secagem da pólvora, a 230 m de distância, um circuito atravessado por nove casas de transmissão, servindo treze oficinas de produção (p. 49). Uma via férrea com 1,5 km de extensão ligava os armazéns de carvão, enxofre e nitrato de potássio às sucessivas oficinas de laboração e por fim aos paióis, onde sobre carris de aço transitavam vagonas com rodas feitas em bronze, para garantir segurança. Edifícios e via férrea parecem estar hoje em decadência acentuada, a densa envolvente de pinheiros e eucaliptos já conheceu certamente melhores dias, mas a maior parte da maquinaria tem sido cuidada com zelo e certificação, permitindo demonstrações a visitantes.

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A centenária história empresarial foi sinuosa como tantas outras, com várias mudanças na estrutura societária, encerramento a meio da década de 1910, concorrência local e “destinos cruzados” com a Sociedade Portuguesa de Explosivos também instalada na Amora a partir de 1928, monopólio estatal da venda de pólvora para as colónias, até que em 1935 foi permitido à CAP produzir também cordão detonante e rastilho, e outros produtos explosivos, “para todas as aplicações”. Mais tarde viriam as mui eufemísticas “adaptações de funcionamento subsequentes à revolução democrática de 25 de Abril” e “reorganização comercial devida à descolonização” (p. 34), e também a certificação e homologação europeia das suas pólvoras negras, até que em 1999 o fim da fábrica bateu definitivamente à porta. O cancelamento do alvará da Sociedade Africana de Pólvora saiu no Diário da República em Maio de 2002.

A partir de 1996 o Ecomuseu do Seixal interessou-se pela fábrica da pólvora já com vista à sua musealização. Assinalou o centenário da indústria com uma exposição no Moinho de Maré de Corroios em 1998, publicando também nessa altura um folheto e um guia de apoio às visitas à fábrica. E a partir de 2002 ocupou-se do tratamento arquivístico do espólio documental cedido, como já vimos, pelos antigos proprietários, e concebeu um “programa-base de musealização do circuito”, que foi subscrito pelo município, representantes da sociedade fabril e entidade proprietária dos terrenos (aliás, nunca identificada no livro). Ausência de controlo e vigilância levou a que “indícios ou suspeitas de vandalismo” justificassem a remoção preventiva de alguns equipamentos, repostos apenas seis anos depois, em 2008, depois de a conservação da Fábrica da Pólvora de Vale de Milhaços, com recursos essencialmente municipais (p. 44), ter ganho alicerces numa decisão governamental.

O tempo transcorrido desde então é que parece excessivo para o que ali precisava de ter sido feito para tornar este complexo industrial desativado e musealizado um ponto de turismo especializado ou um centro interpretativo e polo histórico-educativo, como alguns outros de primeira categoria noutras partes do país e fora dele. Serão provavelmente necessários avultados recursos que só financiamento comunitário conseguirá garantir, como recomenda Carlos Matias Ramos, ex-presidente do LNEC, e nas entrelinhas deste livro parece admitir-se não haver outra maneira de levar o projeto a bom porto. Contra factos não há argumentos e, ademais, o prestígio da arqueologia industrial foi, entre nós, um sol de muito pouca dura…

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