O pacto com o leitor difere do pacto do romance convencional. Regra geral, são conhecidos os limites da estratégia narrativa a que se convencionou chamar auto-ficção. Knausgård será o seu expoente máximo. Regra geral, induz a muito desastre, sendo fácil aos outros meterem-se só dentro de si, não dando ao leitor forma de participar na relação dialógica: ao invés disso, este é apenas receptor. Conhecidos os limites, há sempre formas de fazer bem e formas de fazer mal. Nas primeiras páginas, fica evidente que Salem Levy o faz bem.

Melhor Não Contar compõe uma narrativa orgânica, que inclui ainda o andamento – artificial ou não – da própria narrativa. À medida que escreve, a autora vai comentando o que está a escrever. Numa narrativa que parecia, a priori, voltar-se para o pretérito perfeito, para a coisa calibrada, a autora vai fazendo pesar no enredo as relações actuais, que compõem um todo orgânico, num livro que faz um apanhado panorâmico de várias relações. No cerne, está o assédio por parte de um padrasto; partindo daí, estão as considerações posteriores – melhor contar ou não –, as dúvidas, as partilhas, as consequências. Um dos pontos mais relevantes será o momento em que a narradora – e a partir daqui usaremos sempre a palavra narradora, à romance –, com 30 anos, em conversa com um namorado décadas mais velho, lhe conta a história do assédio. A resposta é quase glacial, o desconforto é constrangedor para quem lê, a sentença sabe a pacto masculino: os homens não gostam de saber essas coisas. Ao longo de toda a narrativa, o leitor vai tendo acesso, partindo da experiência de uma vida, à forma como se parece ir delineando, ao longo de décadas, um bisturi a cortar a empatia, e a desvalorizar, ou a chutar para o lado, o que pertence apenas ao corpo feminino. Temos, por exemplo, as dúvidas sobre o caso de Virginia Wolf:

Será assim tão comum que os homens gostem de se deitar sobre corpos fragilizados pela dor?

Que Virginia tenha falado sobre isso na década de 1930, não canso de repetir, é algo extraordinário. Que ela mal tenha sido ouvida ao longo das décadas que se passaram, é o nosso mundo.” (p. 38)

Cogitar a dúvida impacta, mas não deixa sequer espaço para inventar respostas. Afinal, Melhor Não Contar foi publicado no momento em que estourou um escândalo em França e no mundo: Dominique Pelicot drogou a esposa e convidou cerca de cem homens para a violarem. Feito o convite, estes aceitaram, e levaram a cabo as violações. A dúvida morre logo em terra, tanto nos exemplos dados ao longo do livro quanto no que se vê na vida.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR


Título: “Melhor Não Contar”
Autora: Tatiana Salem Levy
Editora: Elsinore
Páginas: 224

O assédio por parte do padrasto da narradora acaba por ser o eixo que permite o romance, mas não o constitui. É necessário ao concatenamento dos elementos, mas — e nisto a autora brilha — permite uma visão panorâmica sobre as relações familiares e amorosas. Em grande parte dos exemplos em que se vê esta estratégia narrativa, há um afundamento no eu, com uma composição formulaica que transforma a relação dialógica num jogo de tabuleiro, confundindo-se o escritor com a personagem e transformando-se o jogo de leitura na tentativa de destrinçar a verdade da invenção. Isto implica que a literatura, regra geral, seja pensada como lugar autónomo, derivando isto num resultado redutor, uma vez que o impulso auto-biográfico pouco faz além de confinar o espaço das potencialidades da literatura. E, ao partir da exposição de intimidade, o romance auto-ficcional tende a tornar-se em extimidade. No entanto, neste caso, o fio condutor traz os elementos externos para a composição do eu, o que faz com que não interesse se o que lá está é real ou não, e com que o romance possa ser lido sem esse jogo de cintura. E é por isso que o seguinte excerto é esclarecedor:

Aos poucos fui entendendo que nunca me identifiquei com essa pergunta, porque quando escrevo não se trata de expor os fatos de uma vida. Nunca tenho a sensação de estar me desvendando aos outros. Escrever é muito diferente de contar um segredo a uma amiga. Nunca, mesmo quando me expus, tive a sensação de estar me expondo. (…) Escrever não é fazer fofoca. Nem simplesmente contar o que aconteceu.” (p. 60)

A prosa é escorreita e, partindo de um eixo que possibilita o romance, Salem Levy faz uma espécie de apanhado de uma vida, numa constelação de relações, tecendo-as. Numa prosa limpa, não raras vezes cortante (logo à cabeça: “Quando penso nesse tempo, sinto algum alívio por já não morar nele.”, p. 22), usa “uma primeira pessoa autobiográfica, num tom de voz muito baixo, quase um sussurro, assumindo que eu sou eu, a narradora é a personagem, e a personagem é a autora” (p. 50). Nisto, surgem ainda considerações sobre literatura, que não apenas se debruçam sobre a ideia de que há uma literatura menor atada a um sexo (que existe em relação de alteridade como a literatura vista por literatura per se, despida de assuntos/experiências inerentemente femininos, como se estes fossem nicho e não parte do que se convenciona chamar “condição humana”), como também advogam a pertinência de uma escrita “de forma pessoal”

Quando mais eu leio histórias de mulheres, mais sentido vejo em escrevermos de forma pessoal. Aquilo que vivemos na intimidade, achando que só acontece com a gente, e por culpa nossa, acontece desde há muitos milénios com, se não todas, quase todas nós. Depois, quando decidimos mostrar para os outros o que escrevemos, nossos diários, nossas cartas, nossas narrativas em primeira pessoa não são consideradas literatura, ou são literatura menor. Só que nada fala mais de quem somos, de quem nos tornamos, coletivamente, do que as histórias de nossa vida.” (p. 39)

Interrompendo a narrativa, vão estando fragmentos do diário da mãe da narradora, morta sem saber do segredo que a filha ocultou, esse segredo que, durante anos, foi “imagem, segredo, pesadelo, silêncio, repetição, fantasma, culpa” (p. 81). Essas partes, escolhidas a bisturi, e quase sempre sobre pequenos namoros, trazem alívio cómico à narrativa, e vão permitindo a presença, e logo em voz própria, da personagem que espoleta a existência do livro.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia