O som das máquinas mergulhará no silêncio e o andaime no centro sairá do caminho assim que a limpeza do lustre estiver completa. Fora de cena o que não é de cena, ou que suba o pano para que ganhem palco 400 peças emblemáticas. No cenário do Palácio da Ajuda, a sala dos Embaixadores, que visitamos em fase de montagens, tem sido cenário das receções diplomáticas ao longo dos anos. Também assiste às passagens de testemunho na história da presidência da República, e às tomadas de posse dos sucessivos governos. E não esqueçamos todos os briefings pandémicos que anunciaram usos e abandonos de máscaras, confinamentos e desconfinamentos e outras imposições trazidas pela Covid-19.
A inaugurar esta quinta-feira, e aberta ao público a partir de sexta, “Rumo ao Infinito – Vista Alegre, 200 anos de criatividade” vive de peças e momentos que combinam solidez com delicadeza, como se também elas convocassem uma dose de diplomacia. Por aqui, expõem-se até 31 de maio as criações que marcaram a produção da Vista Alegre desde a sua fundação, em 1824, até às colaborações mais recentes. “200 anos é muito tempo na história de Portugal e particularmente numa empresa, é raro, se não único, este tipo de continuidade. E 200 anos numa fábrica que produz em série são milhões de peças, e esse era o grande desafio. Como é que nós podíamos tirar daí algo de criativo e fundamental para a própria criação artística portuguesa”, explica o historiador Anísio Franco. Vice-presidente do Museu Nacional de Arte Antiga, cuja ligação com a Vista Alegre se perde no tempo, para esta missão o objetivo foi, no entanto, convocar “uma visão muito subjetiva de duas pessoas que não estão relacionadas com a marca”, acrescenta a também curadora Filipa Oliveira. “Queríamos interromper uma narrativa mais estabelecida, ter um olhar desapegado das tradições”.
Sem preconceitos artísticos, cada um destes objetos é elevado a obra de grande arte, ilustrando como a empresa foi capaz de criar, renovar e em alguns casos, lembra a dupla, até de se antecipar nesse gesto criativo. Foi fundamental, e uma das primeiras, por exemplo, na partilha do trabalho industrial com os grandes nomes de arte, que em cada momento deixaram a sua marca nas peças Vista Alegre. Um toque estético que não esbate a essência do nosso modo de agir e usar. “Pensamos sempre em termos concretos. Para que é que serve? Nunca houve na tradição histórica portuguesa uma verdadeira especulação artística. Portugal é um país iminentemente prático, não há outra filosofia; somos o povo da experimentação, por isso é que fomos tão longe.”, elabora Anísio Franco.
Das encomendas do Rei Artista aos banquetes da República, da exclusividade artística à produção em série
Nascida de um “sítio quase utópico”, uma capela em Ílhavo, “onde se tinham passado uns milagres, que provocavam vista alegre”, a marca atravessou momentos tremendos e convulsões mundiais que pediram passos e saltos oportunos — também uma transição de regimes e roda viva de governos. Mas antes da entrada e saída das figuras da República coube à Casa Real ser um dos grandes patrocinadores da Vista Alegre, desde logo D. Fernando II (1837-1853), o Rei Artista, que vai ele próprio fazer encomendas, incentivando a cerâmica e a melhor tradição nacional. “Serve-se dessas grandes produtoras para desenvolver as questões artísticas. E claro que a coroa se torna uma grande encomendante, incluindo para o próprio serviço do Palácio da Ajuda, ainda hoje. Quando há jantares oficiais é com o serviço Vista Alegre que se serve“, lembra o curador. Não por acaso, na exposição há margem para peças com imagens que aludem à realeza lusa, num pioneiro merchandising.
Vale a pena recordar que nessas primeiros anos do século XIX a fábrica começa por produzir vidro, depois peças em pó de pedra, até que se encontram as melhores matérias para seguir pela porcelana. Essas são, aliás, um dos dois eixos da mostra. “Como se reinventa a forma ao longo dos 200 anos? Só com os melhores materiais podemos experimentar a forma.”, descreve Filipa Oliveira.
Sobre a proveniência deste acervo, algumas peças vieram do Museu Nacional de Arte Antiga, outras do Museu da Vista Alegre e da Fundação Medeiros e Almeida, e algumas ainda da coleção particular da família de João Pinto Basto, fundador da marca.
O casal de perdizes, representativo da primeira série especial feita em 1971, manifesta esse trabalho de pintura à mão, e reflete o impacto dos acontecimentos tecnológicos que foram marcando cada peça, mesmo as que parecem mais simples. “A exposição condensa parte artística, inovação, busca da forma mas também a produção, consegue-se ver o objeto em cru, os resíduos de pasta”, descreve Filipa Quatorze, coordenadora do Museu da Vista Alegre, apontando para esta reunião de peças tão utilitárias quanto complexas.
Até chegarmos à década de 70 do século XX, há muito por contar. E mesmo o olhar mais ágil por este mapa consegue detetar a evolução das grandes correntes artísticas, dos acontecimentos a nível doméstico, e do gosto e das tendências à mesa ou no quotidiano. Na zona inferior, o foco está na invenção, na parte superior da estrutura o destaque vai para a massificação.
Recuando às peças com que arrancaram, vale a pena apreciar um apanha moscas, o frasco bojudo onde se colocava água e mel para atrair insetos voadores indesejados, funcional com um elemento de laboratório ou farmácia. Também um galheteiro super funcional que mais parece saído do século seguinte. E em geral, o requinte da aplicação de novas técnicas, a lapidagem, e a gravação. Já em pó de pedra, saltam à vista uma jarra, uma saladeira extraordinária e um castiçal que saiu torto, sendo “visível esse período de experimentação”, refere Filipa Quatorze. A viagem continua com a figura que descobre a porcelana, e a do fundador José Ferreira Pinto Basto e da esposa, Bárbara Allen, mais os 15 filhos. Até que em 1827 se produzem as primeiras peças em porcelana, duas chávenas, uma delas recentemente adquirida pelo Museu. “Se por acaso tiverem em casa uma xícara destas convém guardá-la e vendê-la.”, recomenda o curador.
Uma delas foi feita para Isabel Maria de Bragança (1801-1876), que desempenhou o papel de regente entre 1826 a 1828. “Foi para mostrar que conseguimos. A porcelana é um desejo muito antigo em Portugal. Fomos os grandes importadores de cerâmica chinesa, desde o século XVI, quem as queria vinha a Lisboa comprar, mas até conseguirmos fazê-la é que foi o problema.”
Pausa para ver uma criação de Rousseau, primeiro grande mestre oriundo de Sèvres, que funda a escola de pintura da fábrica da Vista Alegre; e ainda as formas clássicas de umas jarras que se vão repetindo e reinventando ao longo dos anos, surgindo no catálogo da casa até aos anos 60.
Entramos depois na era das personalizações dos serviços, exemplo disso é a terrina do marquês de Abrantes, de 1846, em pleno período romântico. “É constante um certo lirismo que não deixa de acompanhar a Vista Alegre mesmo nos momentos mais modernos”, refere o historiador.
Um prato cedido pelos descendentes do engenheiro José Ferreira Pinto Basto, com o retrato do fundador, pintado pelo segundo mestre da fábrica, cruza-se com peças que quase vêm da olaria, como cântaros de água. Até ao período de 1870 é possível conferir um bacio de quarto, outro com tampa, ou uma botija de casa de banho. “Nesta altura já temos coisas tão modernas como a Arte Nova, que se junta ao período naturalista da flores e plantas.”
Chegados a 1890, já temos um vislumbre de Art Déco, que explode apenas com a descoberta do túmulo de Tutankamon, em 1922, daí o espírito neo egípcio. Impressionantes são a torre abstrata de cerâmica com uma pintura de escorrimento, a terrina com degraus geométricos, os bules com formas aerodinâmicas, para não falar do recurso a pasta com pigmento cor de rosa, o mate no lugar do brilho, e ainda o piscar de olho à Secessão Vienense, numa altura de pós I Guerra em que a fábrica teve que se reinventar e celebrar o primeiro centenário. Peças de autor com assinatura de Rui Roque Gameiro, Delfim Maia, ou João da Silva carimbam o “grande salto qualitativo que a escultura sofre”, lembra Filipa Quatorze.
Já no pós II Guerra impõe-se um retorno à ordem, à serenidade. “Nos anos 50, temos a chávena saída do primeiro forno de túnel da fábrica, um grande salto tecnológico, em que se abandonam cozeduras em garrafa por cozeduras contínuas.”, explica a responsável pelo museu.
Veio um período difícil para a fábrica e o regresso à aposta segura: o serviço da cozinha velha, o grande clássico da casa portuguesa. Em paralelo, o trabalho manual resultante de uma residência artística em 1986, que não foi comercializado.
Nos anos 1997/2000, Sam Barron pega em moldes de pegas e produz para a marca. A criação faz a ponte com as escolas e ainda artistas consagrados, como Pomar, Siza Vieira, Eduardo Nery ou Cruzeiro Seixas. A partir de 2009, abre-se a porta ao período contemporâneo, com desafiantes candeeiros e experiências com ilustradores e artistas, terminando com Lourdes Castro.
Presente, um “Grand Canyon” passado e o futuro
Toda a exposição terá como banda sonora de fundo a música de Rodrigo Leão, com a composição “Valsa Alegre”, criada especialmente para a celebração do bicentenário da Vista Alegre. A visita começa pela sala D. João IV, que também cumpriu a sua função durante os tempos da pandemia — aqui decorreram as reuniões do conselho de ministros, com a devida distância de segurança garantida entre participantes. Ao centro, sob os três lustres, a grande mesa dourada desenhada por Nuno Gusmão, do estúdio de design P06, onde se acomodam algumas peças Vista Alegre disponíveis para venda nesta loja pop up, do cristal aos têxteis, para uma abordagem lifestyle.
Segue-se o tal coração da mostra. Foram precisos dois meses para executar a estrutura de alumínio espelhada, com seis metros de altura, que permite que o edifício dialogue com a exposição sem esmagar a porcelana, e que oferece uma panorâmica completa desta narrativa cronológica com 200 anos. “Chama o edifício para dentro e dá este efeito de Grand Canyon.”, explica Gusmão. “Podemos estar aqui segundos ou passar horas a ler as legendas. A encomenda era mostrar os 200 anos, a condicionante era a sala, e aqui o efeito pretendido foi conseguir uma superfície branca em que a sala não comesse as peças. No interior desta redoma temos assim o tempo. Só de virar a cabeça consigo ver os 200 anos.”
No corredor que se gera em redor, a circulação permite uma visita aos bastidores da fábrica, com diferentes pontos com cortinas, como se fosse um teatro, que ilustram as diferentes estações da porcelana, dos moldes até ao produto acabado.
A caminho da terceira e última etapa, são exibidos filmes que enquadram a historia da empresa, o trabalho fabril e o processo de manufatura. Por fim, na zona da Capela, encontra-se a instalação Continuum, da artista britânica Clare Twomey, que confronta o visitante com o início de tudo, a matéria, através de uma cascata de barbotina onde quem chega é convidado a ouvir e admirar o som, o brilho e a fluidez da porcelana.
Entre tanta preciosidade e fragilidade, houve perdas a registar durante os trabalhos de montagem? “Uma ou outra peça precisou de um ligeiro restauro, mas nada de especial”, avança Nuno, que partilha umas lições de fixação. “Cada peça está colada com a chamado museum wax, uma cera que as agarra e não as deixa mexer se houver abanões, ou mesmo um terramoto. Mais depressa cai tudo, mas elas ficam fixas.”
A exposição estará aberta ao público de 22 de novembro de 2024 a 31 de maio de 2025, de quinta-feira a terça-feira, das 10h às 19h. Bilhete Exposição 7€. Bilhete Combinado (palácio e exposição) 12,5€