O realizador Justin Amorim está a fazer um filme sobre o poeta português António Botto. Conhecido pelo escândalo da Literatura de Sodoma e por ser próximo de Fernando Pessoa, Botto teve um papel fundamental na história da poesia homoerótica portuguesa. A rodagem da obra de ficção deve arrancar em 2025, confirmou o cineasta ao Observador.
Cartas Que Me Foram Devolvidas compõe o retrato de António Botto, abarcando a vida e obra poética do escritor, desde o lançamento de Canções, em 1921, até à publicação de Cartas que me foram devolvidas, em 1932. “São recordados os seus amantes imaginários, como Lorca e Nijinsky, e os seus amores e amizades reais, como o Infante Luis Fernando de Orleães, Fernando Pessoa, António Ferro, Reinaldo Ferreira e Judith Teixeira”, pode ler-se na nota de intenções do realizador, que descreve Botto como “um artista cuja obra tem sido elidida pelo tempo e um homossexual oprimido que foi obrigado a viver as suas vontades básicas unicamente através da fantasia, pois a sociedade não o permitiu de outra forma”. Para já, o elenco conta com a atriz Alba Baptista (cuja carreira internacional se destaca pela série Warrior Nun).
Depois de Leviano (2018), esta é a segunda longa-metragem de Justin Amorim, que assina o argumento com Francisco Mira Godinho. O filme é uma produção da Ukbar com a Promenade, e conta com o apoio da Associação Internacional Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo (ILGA) e dos investigadores Richard Zenith e Anna Klobucka. A obra recebeu financiamento do ICA — Instituto do Cinema e do Audiovisual no valor de 600 mil euros.
António Tomaz Botto, poeta que Fernando Pessoa considerava ser o único esteta em Portugal, nasceu a 17 de agosto de 1897, em Abrantes, mas foi em Lisboa que cresceu e viveu até aos 18 anos. Até à morte, a 16 de março de 1959, no Brasil, para onde tinha emigrado uma década antes, publicou uma longa lista de livros, de diferentes géneros literários, de entre os quais se destaca a obra de poesia, com uma homossexualidade transparentemente confessada nos versos. Após o lançamento da segunda edição de Canções, em 1922, pela editora Olisipo de Fernando Pessoa, esta tornou-se o centro de uma intensa polémica que envolveu Pessoa, Raul Leal e a Liga de Ação dos Estudantes de Lisboa, que levou a cabo uma ação moralizadora contra a chamada “Literatura de Sodoma”. Como resultado, a venda do livro de Botto foi proibida. As edições mais recentes de algumas das suas obras saíram pela já desaparecida Quasi e estão, neste momento, indisponíveis.
“A vida de António Botto é desconhecida pela maior parte dos portugueses”, nota o realizador. “Fica também por isso no esquecimento o primeiro coming out público português sob a forma da sua obra poética”, diz, referindo-se a Canções. “Esquece-se também o acontecimento proto-Kristallnacht, que se iniciou através da Liga de Ação de Estudantes contra a Literatura de Sodoma, para destruir os seus livros, as livrarias que os vendiam, e as pessoas que o defendiam. Esquece-se o seu despedimento da função pública pela sua homossexualidade e consequente exílio no Brasil. Ora, esquecer Botto, além de esquecer um grande poeta, é esquecer a história e consequente luta portuguesa no que toca aos direitos LGBTQ+ e elidir uma pessoa extraordinária e pioneira quer no foro cultural, quer na sua esfera mais íntima”.