Nascido como leitura-performance em pequenas salas de Lisboa e do Porto e depois transformado num livro rapidamente engolido pelo vórtice editorial português, em Episódios de Fantasia & Violência, a escritora e investigadora queer p. feijó desfia uma narrativa autobiográfica acerca da forma como o seu corpo é percebido e sentido pela própria e, principalmente, por nós, os outros.

Todos temos visões muito eruditas e esclarecidas acerca das lutas e causas da comunidade LGBT, que, apregoamos confiantemente, ameaçam fazer ruir o mundo que durante séculos construímos com tanto cuidado. Em certo sentido, feijó parece concordar com esta ideia, ainda que para isso, como veremos, parta de pressupostos radicalmente opostos aos que normalmente povoam os artigos de opinião de vários cronistas portugueses.

Episódios de Fantasia & Violência assenta em dois pilares. O primeiro é a história do dia em que a escritora, ao descer a rua, se cruzou com um grupo de gajos (esta palavra, como se perceberá mais à frente, é instrumental para o argumento do livro). Um dos três rapazes diz uma piada, os outros riem-se e feijó reconhece neste episódio “uma cadência muito específica na conversa, no quebrar do silêncio, no irromper do riso”. Percebe que a piada era sobre si. Era sobre a “paneleira”.

A dificuldade que se segue é explicitada pela escritora, quando se questiona: “como é que eu posso explicar tudo isto”. A resposta que feijó encontra para este problema não seria a mais óbvia: em vez de renegar a herança de uma cultura tantas vezes descrita pelos estudos queer como patriarcal, a escritora apoia-se nela e incorpora em si (nunca explicitamente) a linhagem do cânone ocidental, reinventando-a. Alude a Platão na extraordinária descrição da forma como feijó percepciona a violência, mas refuta a teoria das ideias apresentada na República, dizendo que o riso dos três gajos não participava da ideia da violência, sendo antes (e nesse sentido, curiosamente, aproxima-se de algumas descrições que encontramos nos sonetos de Camões) “a própria violência, como coisa preexistente, que tem um riso (…) esse riso é apenas concentração de algo suspenso no ar (…) o mundo parece só poder existir contra a minha existência”. Alude subtilmente à Teoria Feminista de bell hooks (por sua vez herdeira das teorias do crítico literário René Girard) na descrição que faz da violência como um rio que viaja sempre de cima para baixo — uma ilusão que feijó arrasará violentamente —: “destrói-me engolir a violência que, incolumemente, de forma tão gratuita, ele se sentiu à vontade em atirar para cima de mim, na certeza de que não ia apanhar com nada de volta”. Alude aos Pensamentos de Pascal ao descrever o desejo (“o desejo nunca deseja um objecto. Nunca quer algo. O desejo só se deseja a si mesmo.”).

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Título: “Episódios de Fantasia & Violência”
Autora: p. feijó
Editor: Orfeu Negro

Páginas: 65
Preço: 10€

Mas, sobretudo, alude a Freud e à psicanálise, sendo talvez esses momentos os mais interessantes do livro. Feijó deixa-se obcecar pela piada dita por um grupo de três gajos porque sente que algo lhe escapara. A violência sentida nesse episódio não parece importante em si mesma, mas antes por vir concluir uma profaníssima trindade, trazendo de volta a violência sofrida às mãos de outros dois gajos da sua infância: o gajo que a manipulara (em ambos os sentidos da palavra) e que levava a que, nas muitas noites em que feijó sonhava esmurrá-lo, ficasse invariavelmente “com o punho preso no meio do ar (…) [que se] arrrrastava [sic] infinitamente sem nunca chegar à cara dele”; e o outro gajo com quem se iniciara às explorações da sexualidade, e que mais tarde a renegaria, fingindo-se desentendido.

Ao imaginar desfechos alternativos para a história dos três gajos, feijó sonha que persegue o rapaz da tal piada, espancando-o, ou fantasia com “fodê-lo à grande”. Mais do que o conteúdo específico destas fantasias, interessa-me a ideia de que “a história dos três gajos a rir não acaba comigo a afastar-me. Se assim fosse, não a reescreveria”. Ao argumentar isto, feijó está a apontar para um aspecto curioso e muitas vezes ignorado da literatura: escrevemos para reinventar o mundo, para nos reinventarmos de uma forma que chute para longe os nossos traumas. Ao fantasiar-se possuída pelo gajo da piada, feijó imagina-se desejada, concebendo o riso já não como manifestação de violência, mas de luxúria. Fantasia-se no corpo certo.

Chegamos assim ao segundo pilar de Episódios de Fantasia e Violência. A evolução do corpo de feijó vem contida no refrão do texto: corpo-ferida-cicatriz. Feijó descreve o seu corpo como estando “em constante guerra com o mundo e consigo. (…) O meu corpo é a possibilidade, capacidade e necessidade de manter coesa uma contradição, um paradoxo efectivo, uma tensão inconstante entre a sobrevivência da célula e o suicídio do átomo”. Ora, ao lermos isto, poderíamos imaginar que feijó se aproximaria de uma apologia bukowskiana do corpo em chaga, como se a dor da diferença a tornasse superior ao resto da humanidade. Não é esse o argumento de Episódios de Fantasia & Violência. E ainda bem.

O que a escritora propõe, voltando ao início deste texto, é que, sim, o seu corpo ameaça fazer ruir o nosso mundo, mas não por ser diferente do corpo dos gajos. A ameaça do malnascido é a de revelar aos gajos (isto é, a quem se julga possuidor de um corpo não cicatrizado, um corpo estanque, um corpo cujas mutações dependem apenas do seu envelhecimento biológico) que não são, afinal, diferentes do monstro que feijó proclama ser. “O difícil não é ser demasiado diferente de vocês. É ser demasiado parecida. E aí entra não a minha, mas a vossa imaginação: vocês re-conhecem-se em mim.”

Apesar da elegância da escrita de feijó, talvez o maior defeito deste texto se encontre na presença esporádica de algumas passagens em que as imagens a que a escritora recorre não são solicitadas pelo texto, mas pela vontade de poetizar, isto é, de o engrandecer e embelezar, como quando se descreve nestes termos: “eu, feita de vulnerável. Eu, toda veia e carne. Eu, apneia de dor” ou nas ocasiões em que lugares-comuns substituem a voz singular da autora (“Eu não me posso esquecer porque me caiu o chão, e foi o fim de um mundo e o início de outro”).

Ainda assim, Episódios de Fantasia & Violência é um livro excelente, que mostra como, se insistirmos em fazer das questões de género uma história de índios e cowboys, não devemos esquecer quem tem, afinal, a pistola no coldre e quem com arcos e flechas procura apenas adiar a sua extinção.

O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico