Elphaba. Foi este o nome que Gregory Maguire deu à Bruxa Má do Oeste no seu livro Wicked: The Life and Times of the Wicked Witch of the West, publicado em 1995, uma versão radicalmente revisionista e desconstrutora de O Feiticeiro de Oz através da história da dita, retratada não como maléfica desde o berço, mas como uma vítima da incompreensão e da intolerância geral, por ser “diferente” (pele verde, unhas aduncas, nariz grande, roupas negras e feitio áspero). Elphaba é, na verdade, bondosa, sensível e inteligente, uma “coitadinha” que a família nunca tratou bem e a cruel sociedade de Oz hostilizou e empurrou para a margem. A começar logo na Universidade de Shiz, onde ela conheceu Glinda, a futura Bruxa Boa do Oeste, oportunista, egocêntrica e popularíssima.
Em Wicked, que deu origem ao musical homónimo da Broadway em 2003, e agora a esta adaptação ao cinema dividida em duas partes por razões de extensão, assinada por Jon M. Chu (a parte 2 estreia daqui a um ano), Maguire antecipou a atual tendência, vigente na Disney, de branquear retroativamente as vilãs das histórias tradicionais, como aconteceu em Maléfica (2014), em que Angelina Jolie é uma muito pouco maligna Fada Má de A Bela Adormecida, e em Cruella (2021), que reabilita a Cruella De Vil (Emma Stone) de Os 101 Dálmatas mostrando como foi maltratada na juventude. Elphaba é uma corruptela do nome de L. Frank Baum, o autor de O Feiticeiro de Oz e de mais 13 títulos passados na mágica Terra de Oz. E esta deturpação onomástica estende-se, em Wicked, a todo o universo de Oz e às qualidades que tornaram os livros e o filme de 1939 com Judy Garland bem-amados por sucessivas gerações.
[Veja o “trailer” de “Wicked”:]
O livro de Gregory Maguire (que foi o primeiro de quatro passados em Oz), tal como o musical da Broadway e agora a versão para cinema — esta, de forma muito mais deliberada e clara —, invertem e desfiguram as premissas, os valores e a mensagem da história original, plasmados no imorredoiro filme de Victor Fleming: o combate entre o Bem e o Mal inequivocamente definidos, o elogio da amizade, da entreajuda e da coragem, e a importância da família. Esta fita de Jon M. Chu vai mesmo mais longe, aplicando a agenda politicamente correta à narrativa, às personagens e até ao elenco. E eis que O Feiticeiro de Oz foi transformado no Feiticeiro woke.
[Veja uma entrevista com Ariana Grande e Cynthia Erivo:]
A Terra de Oz é agora um lugar repressivo e de pendor totalitário, mas devidamente multicultural, em que o afável Feiticeiro (Jeff Goldblum) que vive na Cidade Esmeralda não passa de um ditador encapotado. Os Munchkins já não são anões, mas pessoas um bocadinho mais baixas que as outras. O ativismo dos direitos dos animais e a crítica à discriminação devido ao aspeto, às capacidades invulgares (Elphaba tem poderes mágicos de nascença), às deficiências físicas e à cor da pele (não basta a Elphaba ser verde, ela também é interpretada por uma atriz negra, Cynthia Erivo, para o filme introduzir e sublinhar, com a subtileza de uma retroescavadora, o tema do racismo), também picam o ponto em Wicked. No final desta primeira parte, Elphaba torna-se não numa feiticeira maléfica, mas sim numa heroica resistente em fuga da ditadura do Feiticeiro de Oz e seus aliados, caso de Madame Morrible (Michelle Yeoh).
[Veja uma entrevista com Jon M. Chu:]
Wicked está muito longe de ser a releitura divertida, deliberadamente camp e inócua de O Feiticeiro de Oz, que “respeita” e até “homenageia” o filme original e os livros de L. Frank Baum, como pretendem alguns. Tudo pelo contrário. É uma reinterpretação corruptora e acintosamente “anti” destes, banhada num moralismo “edificante”. Cynthia Erivo não tem qualquer credibilidade no papel de Elphaba (a memória da aterrorizadora Margaret Hamilton no filme de Victor Fleming é fortíssima e inapagável), enquanto Ariana Grande se sai menos mal como Glinda. E só podemos lamentar que Idina Menzel e Kristin Chenoweth, que as interpretaram na produção da Broadway, não tenham transitado para aqui nos respetivos papéis (aparecem ambas numa breve sequência com Norbert Leo Butz, que fez o sedutor Príncipe Fiyero em palco e é aqui substituído por Jonathan Bailey).
[Veja algumas imagens do filme:]
Duas ou três canções da banda sonora assinada por Stephen Schwartz (O Corcunda de Notre Dame, Pocahontas) são trauteáveis, mas no plano musical e coreográfico, Wicked está muito longe do melhor que a Broadway já fez neste género. A realização de Jon M. Chu (autor de futilidades como Asiáticos Doidos e Ricos ou Ao Ritmo de Washington Heights), é frenética, impessoal e muito dependente dos efeitos digitais, que conferem ao filme uma identidade visual sintética e fake, e são incapazes de despertar no espectador o espanto e a sensação de maravilhoso dos efeitos artesanais mas ainda hoje eficacíssimos da fita de Victor Fleming. Além de ser ideologicamente detestável, Wicked é cinematograficamente medíocre.
Sem deixarmos a Terra de Oz, o cinema oferece dois bons antídotos a Wicked. O primeiro é O Feiticeiro (1978), de Sidney Lumet, uma imaginativa e subvalorizada versão de O Feiticeiro de Oz só com atores e cantores negros, entre eles Diana Ross no papel de Dorothy e Michael Jackson no Espantalho, e passada numa Nova Iorque transfigurada em Cidade Esmeralda fantástico-futurista. E o segundo é o magnífico e sombrio O Mundo Fantástico de Oz (1985), de Walter Murch, a continuação não-oficial do filme de 1939, baseado no segundo e terceiro livros da série Oz de Frank L. Baum, com Fairuza Balk no papel de uma Dorothy que regressa à Terra de Oz e a encontra devastada pelo maléfico Nome King. Estes filmes, cada qual a seu modo, e não Wicked, é que fazem jus à herança de Frank L. Baum, enriquecendo-a sem a desvirtuar.