Um presente envenenado. Marcelo Rebelo de Sousa recebeu esta quarta-feira o Luís Montenegro e demais elenco governativo em Belém para os tradicionais votos de boas Festas, e, por entre muitos elogios à capacidade de trabalho demonstrada num “tempo muito curto e muito intenso”, o Presidente da República deixou um aviso sério à navegação: “Não basta solidariedade institucional, que continua a ser boa. Não é suficiente. Tem de haver no presente a cooperação estratégica. Ela exige estabilidade, segurança e previsibilidade.”
A coabitação entre Marcelo Rebelo de Sousa e Luís Montenegro tem sido feita de distanciamento estratégico e de aproximações táticas. Ao contrário do que aconteceu durante um largo período do reinado de António Costa, Montenegro não procura ativamente a colaboração do Presidente da República. E, não sendo uma relação adversarial, não existe a cumplicidade política que existia entre Costa e Marcelo, ao ponto de o Presidente República ter dado nota pública disso mesmo há dias. “Éramos tão felizes e não sabíamos”, desabafou há dias Marcelo. Revelador.
No núcleo mais próximo de Montenegro existia e existe a convicção de que o Presidente da República terá a tentação de ditar os ritmos do Governo e de condicionar a agenda do primeiro-ministro. Numa estratégia que foi pensada para controlar, ao milímetro, todos os aspetos da governação, a imprevisibilidade de Marcelo foi sempre um ponderador a evitar.
Este renovado recado de Marcelo Rebelo de Sousa não pode ser retirado deste contexto particularmente delicado que tem marcado a relação entre Presidente da República e primeiro-ministro. Marcelo não faz grande segredo de que está frustrado com a pouca partilha de informação entre Palácios e já manifestou alguma irritação em processos onde, julgava o Chefe de Estado, deveria ter sido envolvido numa fase muito mais prematura do processo de decisão — como na escolha do Procurador-Geral da República, da comissária europeia ou do elenco governativo, por exemplo.
Agora, no lançamento do seu último ano como Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa fez questão de exigir mais do que “solidariedade institucional”; segundo o Chefe de Estado é mesmo preciso “cooperação estratégica” entre Belém e São Bento, sobretudo num ano que será de grande exigência para o Governo, com duas eleições no horizonte e um quadro internacional particularmente exigente e imprevisível.
Marcelo respondia assim a Luís Montenegro, que, minutos antes, se tinha desdobrado em elogios ao Presidente da República. “O senhor Presidente da República é uma personalidade que tem uma sensibilidade social muito acentuada e que nos transmite e sensibiliza também. Isso tem sido importante para nós aprimorarmos todas as medidas que garantem um Estado social salvaguardado”, agradeceu o líder social-democrata.
Mas as palavras contam. E quando o primeiro-ministro falou em “solidariedade estratégica e cooperação produtiva”, o Presidente da República corrigiu e respondeu-lhe falando em “solidariedade institucional” mas sobretudo “cooperação estratégica” — o que sugere, precisamente, que, mais do que ser informado das grandes decisões tomadas pelo Governo, ou mais do que ser relegado para o plano inspiracional, Marcelo quer mesmo ser parte das grandes decisões.
Ora, apesar dos nada discretos lamentos de Marcelo sobre Montenegro — que começaram ainda antes do episódio do “urbano-rural” —, primeiro-ministro e Governo têm evitado responder direta ou indiretamente ao Presidente da República, evitando alimentar qualquer drama entre Palácios. Nos cumprimentos de boas Festas a Marcelo, Montenegro fez mesmo questão de falar no “privilégio” que tem sido “interagir” com o Presidente, num esforço sempre conjunto. “Temos estado juntos a pensar e a realizar análises prospetivas para o país e na procura de resultados”, resumiu o primeiro-ministro. Não parece que Marcelo concorde particularmente com esta leitura da realidade.
Tal como contava o Observador ainda em setembro, Marcelo olha para Montenegro como alguém que “tem de dar todos os dias a sensação que está a fazer, e de mudar de um tema para o outro para chegar antes de todos os outros”. “O primeiro-ministro não tem estados intermédios de ponderação. Medita muito sem partilhar informação. Tem um cuidado extremo com a imagem. Opta pelo sigilo e fala pouco. Tem uma estratégia pensada desde o início, muito concentrada numa pessoa. É solitário. Tudo é pensado com um sentido muito cuidadoso”, sintetizava então fonte de Belém.
Esta quarta-feira, em Belém, rodeado dos 17 ministros do Governo, Marcelo Rebelo de Sousa aproveitou para apontar isso mesmo e pintar Luís Montenegro como alguém que tem procurado “estar em toda a parte ao mesmo tempo”, algo invulgar para quem ocupa funções executivas, que está há oito meses em “contrarrelógio” por sentir que “um dia perdido pode ser irrecuperável” e que procura, até às próximas eleições antecipadas, alargar a sua “base eleitoral de apoio” partindo de uma situação política necessariamente precária. “A ideia é não deixar que aceleração pela história acabe por atingir promessas e concretizações de forma irrecuperável”, avisou Marcelo. Resta saber se Montenegro o conseguirá.
Montenegro e Marcelo: uma relação de distâncias e de aproximações
Marcelo reconhece quadro parlamentar “mais complexo”
Depois de se despedir dos membros do Governo, Marcelo Rebelo de Sousa receberia ainda no Palácio de Belém José Pedro Aguiar-Branco, os membros da mesa da Assembleia da República e os representantes dos vários grupos parlamentares. Dirigindo-se aos deputados, o Presidente da República sublinhou, por diversas vezes, a atual “composição” parlamentar, sendo “mais exigente” e “diferente” de todas as outras, resulta da “vontade dos portugueses”.
Marcel referia-se naturalmente à ascensão do Chega e ao facto de o partido de André Ventura ter conseguido eleger 50 deputados, rompendo com bipartidarismo e criando uma nova “fórmula”, com três blocos em confronto simultaneamente. Depois das maiorias absolutas, das maiorias relativas e da ‘geringonça’, esta é “uma quarta fórmula, mais exigente, mais complexa, mas que traduz a vontade dos portugueses”, repetiu Marcelo Rebelo de Sousa.
Antes dele, já José Pedro Aguiar-Branco, com uma nada discreta referência ao Chega, tinha repetido uma mensagem que se tem esforçado por fazer vingar ao longo das últimas semanas: apesar de tudo, o Parlamento, com mais ou menos drama, como mais ou menos tensão, com “mais ou menos tarjas”, funcionou e tem funcionado.