Programar uma viagem é como qualquer outra atividade: havendo dinheiro, tudo se consegue em poucos minutos. As tecnologias revolucionaram a forma como nos organizamos para descobrir o mundo. O turismo, palavra cara a Portugal, que contribui e muito para a economia nacional, alterou cidades, hábitos de consumo, comportamentos. Só em 2023, o país recebeu cerca de 26 milhões de turistas. O surgimento de novos lugares de estadia ameaçaram outros, mais tradicionais, como motéis ou pensões. Colocaram no topo da agenda os crescentes problemas de habitação. Mas os hotéis, muitas vezes associados a categorias da sociedade mais altas e com mais posses, continuam a resistir. É raro não darmos conta de um novo estabelecimento em cidades como Lisboa e Porto que abriu onde estava um prédio ao abandono, no lugar de um antigo convento ou para substituir um restaurante ou espaço cultural, por exemplo.
Odiado por uns, amado por outros, o hotel aliou-se ao conceito de turista — e também de viajante — em diferentes momentos da nossa história, não existindo um ponto de partida fixo que possamos rastrear. Na série Hotéis XXI, assinada por Marina Reino e produzido por Maria & Mayer, que tem estreia marcada para este domingo na RTP2, somos convidados a fazer um exercício de empatia perante paredes que recebem novos olhares todos os dias. Seis episódios que viajam do norte a sul do país e mostram como os hotéis se ajustaram às novas necessidades dos seus clientes, através de depoimentos de quem os pensa e de quem os põe a funcionar. “Estamos a abandonar padrões conservadores da hotelaria, de tradição e hierarquia. Descobri projetos pessoais, de quem não estava ligado ao sector, e que criou um escape de mudança, que quer servir o outro e receber em casa”, revela Marina Reino em entrevista ao Observador.
[trailer da série “Hotéis XXI” da RTP2:]
Fica o aviso: esta não é uma série de lifestyle. Claro que poderá sentir-se seduzido pelas imagens de espaços como o São Lourenço Barrocal ou o Torel 1884, a Tipografia do Conto ou a Hospedaria & Pensão Agrícola, mas o mais importante a reter é a observação feita na série que dá até um sentido mais profundo ao ato de viajar do que aquele que hoje muitas vezes lhe é atribuído, já que, com o surgimento de companhias low cost, com a criação de hotéis de duas ou três estrelas ou os “bed and breakfast”), o turismo tornou-se frenético e imediato, transformando uma viagem em algo normal e nem por isso inesquecível. Mas esse tom mais humano, até poético, faz sentido em Hotéis XXI.
Marina Reino vem de uma família de viajantes. Viveu nos Estados Unidos da América, estudou música em Barcelona e terminou a licenciatura em Comunicação Social no Rio de Janeiro. Tem uma curta-metragem a caminho e outra já lançada: A Beleza das Pequenas Coisas, com textos de Soetsu Yanagi, filósofo japonês. Antes, e sobretudo no inverno, viajou muito com os pais, que tinham negócios de restauração na Comporta, uma das regiões habitualmente usadas como exemplo das transformações que o turismo tem vindo a protagonizar em Portugal. “Viajámos pela Costa Rica, Japão, por aí fora, mas nunca usando hotéis de luxo. Quando surgiu este convite para filmar, sabiam deste meu background ligado ao universo da restauração e da hotelaria. Fui desenvolvendo esta relação com os hotéis, este fascínio, com estes ‘espaços secretos’. Queriam uma visão mais pessoal com estes sítios”.
Marina Reino nunca tinha entrado em nenhum dos espaços que filmou. Passou muitas horas com a sua equipa em entrevistas. Vemos e ouvimos geógrafos, estudiosos de semiótica e designers de interiores. Alguns temas tiveram que ficar de fora, como o impacto do turismo na gestão hoteleira do país. Não por pressão ou falta de vontade, mas porque, na produção de qualquer filme ou série, há decisões para tomar. A autora foi à procura de perspetivas diferentes que confirmassem o paradigma vigente: quem habita um hotel está a fazê-lo durante cada vez mais tempo. Não se trata de uma segunda casa, mas sim do prolongamento do lar. Em muitos destes sítios, já não cabe a definição de transição. A visão hoteleira dos hóspedes, que não corresponde a todos os bolsos — e para perceber isso basta fazer uma rápida pesquisa pelos locais filmados em Hotéis XXI — vai-se transformando e adaptando (ao mesmo tempo que pede adaptação).
“As pessoas hoje em dia tentam quebrar a rotina, daí ter feito um episódio ligado ao prazer. Estes lugares têm-se adaptado à realidade, porque há quem fique lá cada vez mais tempo, apesar do quarto ser individual.” Como se ouve logo no primeiro episódio, essa individualidade desaparece nos espaços comuns, que se parecem cada vez mais com salas de estar ou escritórios caseiros. Se cada um de nós se deixa enganar pela ideia de que nas férias vamos ser totalmente diferentes do que somos no dia-a-dia laborioso e tarefeiro (sem recorrer a planeamento), também assic acontece porque muitas vezes somos recebidos por espaços que nos querem “tranquilizar e aquecer a alma” (ou assim supõem). “Essa ideia de transição já não existe. Eu, por exemplo, e sei que não é habitual, gosto de ir almoçar a hotéis. A questão da libertação pessoal é muito importante para estes espaços”, refere.
Existem, contudo, outros temas caros para Marina Reino, como a arquitetura, o ambiente ou o desperdício. Aliás, terão sido sobretudo temas como estes a ditar a seleção dos espaços hoteleiros a incluir nesta série. Como referido acima, lugares como o São Lourenço do Barrocal, grande projeto de recuperação patrimonial num monte alentejano de cinco estrelas, não foram escolhidos por aquilo que oferecem ou por darem bonitos planos, segundo a realizadora. “Interessou-me mais o lado de recuperação de património, porque sabia que o arquiteto Souto Moura tinha estado envolvido no projeto. Ou, no caso da Casa das Penhas Douradas, a questão do combate à desertificação de uma parte do país. Ou na zona do Burel ou Rio do Prado. Também fui à procura de projetos ligados à sustentabilidade. Ou melhor, à luta contra o desperdício, porque não gosto da primeira palavra. Ainda há pouco tempo, em viagem, dei de caras com um letreiro no qual se lia a expressão ‘eco friendly’ com plantas de plástico ao lado. Existe uma grande apropriação de palavras da nossa parte.”
Ou seja, a série vai para lá daquilo que acontece entre as paredes dos hotéis. Procura antes um lado antropológico e social de projetos personalizados e pessoais que custam dinheiro a construir (e a consumir) para fazer face aos grandes desafios do mundo: como mudar hábitos para salvar o planeta sem que tenhamos de parar de o explorar como viajantes. Não soa a convite publicitário para entrar. Que se beba primeiro um café, que se troquem dois dedos de conversa sobre a história de cada lugar e, depois, logo se vê.