Título: Bonecos de Barcelos. Identidade, tradição e criação artística
Autores: Alexandre Alves Costa, Sergio Fernandez e outros
Editor: Universidade do Porto Press
Design: João Bicker / FBA
Páginas: 224
Preço: 45 €

Enquanto se espera que a ministra Dalila Rodrigues reabilite e reforce o Museu de Arte Popular, em Lisboa, dando-lhe a relevância que ele nunca deveria ter perdido às mãos de preconceitos ideológicos e de uma miopia cultural grave (além duma inapagável responsabilidade pessoal), este livro-catálogo editado pela Universidade do Porto Press — com impecável design de João Bicker — vem honrar com grande dignidade alguns daqueles admiradores, coleccionadores e estudiosos da olaria barcelense, de que Rosa Ramalho (1888-1977) será sempre o expoente máximo e a histórica figura de referência. Sergio Fernandez diz, a certa altura, que a doação da colecção “tornou-se um imperativo que cumprimos com a máxima convicção” (p. 139). É que, de certa forma, esta é também uma história deles, a história da sua atenção a uma forma de arte típica da época pré-industrial que combateram, como segundo modernistas, no seu ofício de arquitecturar os espaços humanos e de conviviabilidade social. (Eles próprios haviam apreendido a lição dos pintores da década de 1920, “a geração de Eduardo Viana”, p. 8.) Nesse sentido, consiste também na melhor demonstração possível de como estão equivocados todos aqueles para quem a “arte do povo”, de que a arquitectura vernacular faz parte, é coisa do passado, e dum passado que importa esquecer ou fazer esquecer.

Se modos e artes (isto é, ofícios) tradicionais estão hoje a ser cada vez mais considerados, da agricultura dita biológica ao fabrico do pão, da refrigeração natural das habitações à lã, ao burel e ao linho da vestiária, ou à marcenaria, então um olhar renovado sobre o passado pode ser tão ou mais contemporâneo que qualquer outro modo de observar o momento presente e enfrentar as cautelas com o futuro. O barro como matéria modelável primordial, a mão humana com o seu polegar e uma coloração feita com pinceladas toscas, quase displicentes, criaram uma vasta galeria de objectos lúdicos, decorativos e votivos postos à venda em poeirentas feiras minhotas ou alentejanas. Representam, é certo, um mundo que tardou em extinguir-se por aqui, mas há neles uma carga poética e imaginária que nos presentifica a vida tal como a viveram os que nos precederam, e não é tão certo assim que, por esse lado, a tal linha do progresso inexorável tenha feito o seu caminho. A plastificação das coisas tem o seu quê que se lhe diga.

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Alves Costa e Fernandez, recusando hierarquizar erudito e popular, colocam o figurado de Barcelos no “território da História da Arte” — “uma autenticidade sem retoques” (p. 7, com itálico), “um país na sua mais profunda essência” (p. 148) — “e não como objecto de investigação antropológica ou etnográfica” restritamente considerada. Este livro, todavia, pende mais para este lado do que para o outro, pelo leque dos colaboradores e pelas suas abordagens. O ensaio do etnógrafo João Leal “O arquitecto e o fascínio do popular” vem enquadrar historicamente as sucessivas aproximações críticas à arte popular feita em Portugal, desde o tempo de Joaquim de Vasconcelos e Rocha Peixoto. Não falha a referência à “cooptação política” (sic) e ao “template decorativista da etnografia do Estado Novo”, nem a sua filiação ao art brut cunhada pelo ímpeto ou delírio mesclador de Ernesto de Sousa, e comenta enfim a perspectiva de Alves Costa, que segue de início o pensamento de Fernando Távora (1923-2005) e mais tarde vai beber — ainda que com moderação — a Jorge Dias e ao seu núcleo de discípulos, onde figuram Ernesto Veiga de Oliveira e em particular Benjamin Pereira. Chama-lhe, por isso, “um encantamento em rede” (p. 20) pela arte popular, estendido à arquitectura vernacular do famoso Inquérito e à musicografia de Giacometti, mas que no arquitecto coleccionador decai no início dos anos 60, quando “eram já outros os interesses de Alexandre Alves Costa”, militante comunista de 1962 a 1968.

Já a pintora Aurélia de Souza se havia interessado pela loiça barcelense, desenhando-a para a revista Portugália em 1899 (v. pp. 194-95). Sarah Affonso também a incluiu na sua pintura. Isabel Maria Fernandes considera que o figurado de barro era secundário na produção olárica, e uma ocupação temporária e complementar exercida por mulheres para a ludicidade dos seus catraios, mas igualmente exercida por «velhos oleiros, cansados das lides da roda, sem forças para produzir cântaros, talhas e alguidares, mas aptos para ir à roda fazer quer peças de olaria de menores dimensões — cucos, rouxinóis, cabaços para os galos — quer figurado» (p. 51). Estudando a colecção do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto, iniciada em 1937-42 por António Marques d’Almeida, Rita Gaspar identifica as primeiras incorporações de figurado de Barcelos no Museu de Antropologia, parte das quais expostas com objectos da colecção Alves Costa e Fernandez, uns doados ao Museu da Universidade do Porto (num total de 600) e outros não. Muitas peças não têm autoria expressa, e o RR de Rosa Ramalho surgiu por uma insistência de António Quadros (1933-94), artista plástico e escritor completamente singular — a sua poesia foi publicada sob o pseudónimo de João Pedro Grabato Dias —, que importa reconhecer como o principal autor dessa aproximação cultural e o “descobridor” da oleira de Barcelos, aliás nas suas próprias palavras (p. 109).

Em Julho de 1958 Quadros expôs no Palácio Foz, sede do Secretariado Nacional de Informação — oito anos após a saída de António Ferro —, trabalhos dela ao lado de seus e de alguns outros de Domingos Pereira Salvador, um carpinteiro e marceneiro de Pitões das Júnias, aldeia transmontana. Em Dezembro do ano seguinte, repete a mesma parceria numa exposição no Ateneu Comercial do Porto, algo que foi descrito como “um diálogo cativante entre dois monstros do barro» (cit. p. 111). E pouco depois leva a “azougada septuagenária” (sic) a aulas da Escola de Belas Artes do Porto, onde ele se tornara oficialmente professor, o que Rita Maia Gomes avalia não apenas como uma questão pedagógica na introdução dos cursos de cerâmica, mas “sobretudo como uma questão simbólica”, “um reconhecimento em primeira instância” (p. 112): “Ninguém na escultura em Portugal chegou à dignidade e simplicidade das formas que ela conseguiu”, diria Quadros numa entrevista, três décadas depois. E ninguém fez mais do que ele para dar estatuto artístico aos trabalhos da ceramista de São Martinho de Galegos, recentemente consagrado, aliás, como refere a antropóloga Sónia Vespeira de Almeida, na exposição na Fundação Calouste Gulbenkian intitulada “Tudo o que eu quero”, que em 2021 escolheu 40 artistas portuguesas activas de 1900 a 2020, na qual Rosa Ramalho aparece a par de, por exemplo, Paula Rego, Helena Vieira da Silva ou Lurdes Castro. Desse longo caminho faz também parte este livro.