Ninguém quer saber de música em dezembro – quer dizer, não é bem assim, os melómanos continuam a ir a concertos e a procurar discos novos, o problema é que quase não os há: a maior parte da humanidade está preocupada com prendas para a família e amigos, jantares de Natal dos vários grupos de whatsapp e a roupa a usar na passagem de ano; de modo que a indústria, no seu Excel de lançamentos, deixa para esta época algumas reedições de clássicos e um ou outro lançamento de um artista que apreciem, mas que estão plenamente convencidos que não irá vender muito. Ou artistas que já venderam muito, já não vendem muito, mas têm um público fiel e sempre é mais um que entra.

Enfim, Natal é sinónimo de negócio e isso não muda no que diz respeito à indústria discográfica. Mas com tempo e paciência encontram-se, entre álbuns novos e reedições de clássicos, material suficiente para um fã de música se entreter enquanto lá fora chove a cântaros e não há nada para fazer. Por matéria suficiente entenda-se: os exatos cinco discos que aqui escolhemos, três originais – um dos quais lançado há meses mas revisto e aumentado numa nova edição – e duas atempadas reedições.

“Heavy Metal”

Cameron Winter

O prémio de Rapaz Desconhecido Que Faz Folk Incrível foi, este ano, para MJ Lenderman, atribuído por unanimidade – não houve praticamente uma publicação que não colocasse Manning Fireworks, o disco mais recente do moço, no topo das suas listas do ano. Mas Cameron Winter merece uma menção honrosa – é menos country que Lenderman, mais relaxadão e ligeiramente stoner.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Nausicaä é pop-folk ligeiramente desafinada que se aninha nos nosso ouvidos e não quer sair – há muito aqui de The Shins e de Neutral Mil Hotel, na combinação de folk com lo-fi. As canções assentam em guitarras à volta das quais orbitam pianos, sopros, metais que, por vezes, procuram deliberadamente dissonâncias; e no entanto não conseguimos deixar de ouvir isto, vez após vez, como no caso da maravilhosa Loves takes miles. Isto é o que se chama uma bela prendinha de Natal.

“Nonetheless” (Expanded Edition)

Pet Shop Boys

Julgo que não cometo nenhuma inconfidência se contar que um dia, ao entrevistar o realizador Pedro Costa, ele admitiu que a sua banda preferida eram os Pet Shop Boys, para surpresa minha: como é que um realizador de filmes tão austeros poderia apreciar pop tão descarada? Com o tempo, o meu olhar sobre o duo britânico mudou: a quantidade de melodias admiráveis que criaram é impressionante, tal como a facilidade com que misturam géneros, da eletrónica ao disco-sound.

Mas o que mais me surpreendeu foi quão extraordinárias são as letras, capazes de abordar a condição gay, o muro de Berlim, o capitalismo ou o HIV numa canção pop. Nonetheless é o melhor disco da dupla no século XXI – outrora isto significaria êxitos certos, mas hoje pouca gente liga a uma dupla de idade avançada, o que significa que canções como Loneliness e New London boy correm o risco de passarem despercebidas. A edição agora lançada contém um segundo disco, em que surgem demos das canções do álbum, algumas canções que não entraram no mesmo e versões como a de All the young dudes, bastante boa, por sinal.

“Fauxllennium”

TV Girl & George Clanton

Foi preciso varar muita internet para chegar a esta conclusão, mas o melhor comentário sobre Fauxllennium é do usuário do reddit Blvd_Nights, que nessa rede social descreveu Fauxllennium como um “Disco divertido, e um disco dos Washed Out melhor do que o mais recente disco dos Washed Out”. Para quem gosta de etiquetar álbuns por géneros, o termo fundamental aqui é psicadelismo, na vertente dançável, o que torna de imediato Fauxllennium parente de Screamadelica, uma linhagem óbvia pelo menos em faixas como Summer 2000 baby.

As tags que o site rateyourmusic usa para descrever o álbum são elucidativas: temos as inevitáveis drugs (a esse respeito a capa é bastante explícita), o sampling, que é muito rhythmic porém ethereal, quase hypnotic até, tudo muito propício a uma boa party, pelo menos uma que seja bem hedonistic. Há quem chame a isto chillwave mas também se pode olhar para Fauxllennium como um bem conseguido exercício revivalista com a Manchester hedonista dos anos 80/90 como epicentro. Qualquer que seja a descrição, isso pouco importa quando há canções tão boas como Butterflies, que com a sua batida dançável e melodia delicada parece uma ode ao MDMA.

“Imperial Bedroom”

Elvis Costello & The Attractions

A nossa porta de entrada para um artista que desconhecemos pode ser a rádio, um texto numa publicação ou, em outras décadas, o nosso vendedor preferido da nossa loja de discos favorita, uma dica de um amigo. De certa maneira foi esta última que me colocou Elvis Costello no caminho – uma mixtape feita por um amigo de universidade abria com Beyond belief, a ótima cantiga que abre Imperial Bedroom, o sétimo disco de Costello, sexto com os Attractions. Para trás ficara a fase new wave, frenética e anfetamínica – lentamente Elvis ia-se tornando uma enciclopédia de toda a música alguma vez feita e a sua escrita denunciava um cada vez maior classicismo.

O que não o impediu de experimentar com instrumentos que até então não usara (cordas, um harpsichord, um acordeão), o que conferiu ao disco um lado de pop barroca, quase orquestrada – era o disco mais cheio de Elvis até então. Disto resultaram canções que aspiravam a ombrear não com a obra dos Sex Pistols mas com a Burt Bacharach: The long honeymoon era delicada e jazzy, Almost blue não destoaria num bar noturno onde os solitários vão afogar as mágoas, Man out of time (grande, grande canção) tinha a pompa de uns ABBA que fizessem versões de Dylan. Passaram 40 anos do lançamento de Imperial Bedroom, que talvez não seja o disco mais fácil para conhecer Elvis Costello, mas é aquele em que conhecemos o que Elvis sempre quis ser.

“Solid Air”

John Martyn

Que mais não fosse, Solid Air tem o seu lugar na história garantido graças à faixa-título, um exercício semi-jazzístico que não estaria desadequado em Astral Weeks, de Van Morrison – a canção é dedicada a Nick Drake, que morreria pouco depois do lançamento do disco; Martyn canta: “You’ve been painting it blue (…) You’ve been seeing it through (…) Don’t know what’s going wrong in your mind / And I can tell you don’t like what you find”  e é belíssima.

Mas Solid Air não se reduz à faixa-título e esta reedição é uma excelente oportunidade para descobrir um dos grandes nomes da folk inglesa experimental da década de 70, cujo seu talento a compor canções arrepiantes é notório em temas como a estupenda Over the hill (daquelas canções que se põe em repeat dezenas de vezes) ou May you never, que é das grandes pérolas esquecidas da folk. Não há a mínima dúvida sobre isto: numa lista dos discos indispensáveis da folk inglesa, Solid Air estaria bem lá em cima. A indústria das reedições esteve bem, neste caso.