Depois das palavras incendiárias contra a política económica seguida pelo governo francês vindas da parte dos ministros da Economia, Arnaud Montebourg, e da Educação, Benoît Hamon, estava declarada publicamente a ruptura dentro do eixo Manuel Valls-François Hollande. A reação foi mais rápida do que se esperava, com o primeiro-ministro a não perder tempo e a dirigir-se ao Eliseu para apresentar a demissão. Mas o Presidente não terá aceitado a saída de Valls e pediu uma remodelação já amanhã. Até lá, no entanto, tudo está em aberto: quem fica e quem sai? Há condições para Valls se manter como chefe do Governo? Ou deve o Presidente dissolver a Assembleia? Coube a Valls arquitetar a mudança mas uma coisa é certa: está tudo nas mãos de François Hollande.

É que no regime semipresidencialista francês, a figura do Presidente da República é a autoridade máxima do Estado, não só na teoria como também na prática da tomada de decisões governativas. Por isso é nele que recaem as culpas pelos fracassos da governação. É o Presidente que nomeia o primeiro-ministro, escolhido normalmente entre os líderes da corrente política mais poderosa dentro da maioria parlamentar da Assembleia Nacional, sendo que ao primeiro-ministro cabe apenas a função de implementar a estratégia governamental desenhada pelo Presidente. Ou seja, o primeiro-ministro é teoricamente o chefe de governo mas é o presidente da República quem, de facto, desempenha esse papel.

O sistema político francês funciona desta forma oficialmente desde 1958, altura da implantação da Quinta República, quando foi criado o cargo oficial de primeiro-ministro. Antes havia apenas o título não oficial de presidente do Conselho de Ministros, que era comummente conhecido por primeiro-ministro mas sem o ser. Na verdade, o ministro nomeado pelo Presidente para liderar os restantes nem sequer era, na prática, líder do Conselho de Ministros, já que era o Presidente da República quem presidia a esse conselho.

Além disto, o regime semipresidencialista francês difere também no que toca ao poder legislativo, sendo que o Parlamento se caracteriza pela existência de duas câmaras: o Senado (câmara alta), composto por 348 senadores, e a Assembleia Nacional (câmara baixa), composta por 577 deputados eleitos por duas voltas. Nas últimas legislativas de 2012, já depois de Hollande ter chegado ao Eliseu, os socialistas liderados por Jean-Marc Ayrault venceram na segunda volta, conseguindo 296 lugares (mais do que os 289 necessários para a maioria absoluta).

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Ao contrário do que acontece em Portugal, a eleição legislativa é feita a duas voltas, obrigando à existência de maiorias governativas e acontece, regra geral, logo a seguir às presidenciais para reduzir a probabilidade de o Presidente ser de um partido diferente do da maioria parlamentar. Em 2012, por exemplo, Hollande foi eleito a 6 de maio, e, a 17 de junho, o PS era eleito como o partido mais votado pelos franceses.

Uma questão de autoridade

A narrativa sobre a sucessão de acontecimentos das últimas horas em França diverge ligeiramente. Segundo comunicado oficial do Eliseu, a decisão da demissão do governo foi tomada “em consenso” entre Hollande e Valls, admitindo mesmo que terá sido Hollande a querer designar Valls para nomear uma nova equipa depois de os acontecimentos se terem precipitado. Mas de acordo com o jornal Le Parisien, o “consenso” foi mais aguerrido e terá sido Valls quem fez o ultimato: “ou ele ou eu”, terá dito, referindo-se a Montebourg.

Segundo o Le Monde, Hollande terá sido, por isso, forçado a reagir, escolhendo Valls. E tudo porque, numa altura em que completa apenas metade do seu mandato de cinco anos e é já o Presidente menos popular que França já conheceu, não pode correr o risco de passar uma imagem que ponha em causa a sua autoridade e permitir que sejam os ministros “rebeldes” a manchar a linha de atuação política escolhida pelo Executivo.

“Qual das duas duplas dirige afinal? A dupla executiva de Manuel Valls e de François Hollande ou a dupla putativa de Montebourg e de Hamon?”, questionava Bruno Le Maire, candidato à presidência da UMP, mostrando aquilo que toda a oposição parece querer evidenciar com a mais recente crise no governo francês: que as divisões que surgem dentro do governo socialista pesam na ação do executivo e põe em causa a sua legitimidade e autoridade governativa.

“Se Arnaud Montebourg e Benoît Hamon tivessem um pouco de dignidade eles demitir-se-iam. Se Manuel Valls e François Hollande tivessem um pouco de autoridade eles obrigá-los-iam a voltar. O problema é que nunca vimos nesta V República tão pouca dignidade e tão pouca autoridade na chefia do Estado. Nunca antes a autoridade de um Presidente da República foi tão abertamente desrespeitada como agora”, dizia o candidato à liderança do partido da direita.

Hollande no centro dos problemas no Governo

Não foi há muito tempo que Hollande fez uso do poder presidencial de demitir e nomear novo governo. Foi a 30 de março deste ano na sequência das eleições municipais que culminaram com uma pesada derrota socialista e uma vitória da direita da UMP (assim como um primeiro avanço declarado da extrema-direita da Frente Nacional, que venceu em 15 cidades francesas). Na altura caiu Jean-Marc Ayrault e Hollande designou o então ministro do interior Manuel Valls, conhecido como o “socialista da direita”, para lhe suceder na liderança. O objetivo, disse na altura, era constituir “um governo de combate” e “uma equipa unida, coerente e coesa”.

Para a oposição, no entanto, não chega mudar de caras de quando em quando. A demissão do governo de Valls apenas cinco meses depois da sua nomeação mostra, segundo sublinhou o ex-primeiro-ministro conservador François Fillon, “a confusão em que se encontra o Presidente da República”. Para o dirigente da UMP, Hollande “tem tentado oscilar entre uma esquerda irresponsável e uma tendência para a passividade”.

“Metade do mandato de cinco anos do Presidente já passou e já augura a má capacidade do presidente, independentemente do governo que vá escolher, de tomar decisões indispensáveis e de provocar o choque de competitividade necessário”, disse Fillon.

Os desafios sucedem-se e os prazos são apertados, estando Manuel Valls numa corrida de reuniões com os restantes ministros do seu governo para apresentar, já amanhã, a Hollande as conclusões para a proposta de remodelação. Além dos ministros da Economia e da Educação, também a ministra da Cultura, Aurélie Filippetti, e a da Justiça, Christiane Taubira, já expressaram noutras alturas o seu descontentamento face às decisões políticas do Governo e o seu apoio ao par ‘Hamontebourg’, nitidamente mais à esquerda.

Certo é que o novo governo de Manuel Valls sairá fragilizado e a maioria socialista na Assembleia Nacional poderá ficar cada vez mais reduzida, como tem vindo a acontecer desde que Hollande tomou posse em 2012 – os Verdes abandonaram em março a maioria governativa, depois de Valls ter sido designado primeiro-ministro, e agora a ala dos radicais da esquerda ameaça fazer o mesmo. A isto junta-se o mais recente grupo de cisão no seio do partido da maioria: os que, como Montebourg e Hamon, se opõem à linha económica de austeridade desenhada por Hollande e seguida pelos socialistas no governo.

As reuniões vão prosseguir durante todo o dia e Hollande já fez saber que só se pronuncia amanhã. O objetivo é saber quem fica com Hollande e quem se demarca. Quem ficar, no entanto, tem de se comprometer com o papel e ser “coerente com as orientações que ele próprio [Hollande] definiu”, lia-se no comunicado emitido pelo Eliseu ao início desta manhã. Ou seja, tudo gira em torno de François Hollande.