A colossal crise financeira de 2008 tem sido coberta pelo cinema americano dos mais diversos ângulos. Já tivemos explicações documentais, em “Inside Job – A Verdade da Crise”, de Charles Ferguson; o ponto de vista do topo da direcção de um grande banco de investimentos em “O Dia Antes do Fim”, de J. C. Chandor; os antecedentes da década de 90 em “O Lobo de Wall Street”, de Martin Scorsese; ou os seus efeitos sobre as vítimas e os predadores que se aproveitam dela, em “99 Casas”, de Ramin Bahrani (já em exibição). Em “A Queda de Wall Street” (“The Big Short”), Adam McKay, especialista em comédias satíricas (“O Repórter: A Lenda de Gordon Burgundy”, “As Loucas Corridas de Ricky Bobby”), trabalhando sobre um livro do jornalista Michael Lewis, conta a história real de um pequeno e heteróclito grupo de investidores, quase todos na periferia do sistema financeiro, que adivinhou que a bolha ia rebentar e apostou contra o mercado, expondo-se à incredulidade e mesmo à troça geral, até os factos lhes darem razão — e uma fortuna em lucros.

[Trailer de “A Queda de Wall Street”]

Co-produzido por Brad Pitt, que também tem um dos principais papéis, o de um banqueiro amargurado que já não acredita no sistema e se afastou dos negócios para investir em sementes, “A Queda de Wall Street” mata três coelhos com uma só cajadada. Consegue explicar a crise do subprime e o estoiro do mercado imobiliário aos leigos que se sentam nas plateias sem se atolar em jargão financeiro; contar uma boa e incrível história; e manter a indignação do vulgo acesa contra as descomunais patifarias do capitalismo sôfrega e esterilmente especulador, e os seus gananciosos e irresponsáveis fautores. Nada mau, para uma fita independente com um orçamento que não chega aos 30 milhões de dólares.

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[Entrevista com o realizador Adam McKay]

Para isso, e para manter as coisas animadas e claras e evitar que o filme se transforme numa bocejante e didáctica recriação de acontecimentos, McKay instala um narrador omnisciente (a cargo da personagem de Ryan Gosling) que se dirige tu-cá-tu-lá aos espectadores, mantém a narração sempre a mexer, faz a espaços floreados de teledisco e pára o filme de vez em quando, para que figuras públicas sortidas como Selena Gomez ou o chef Anthony Bourdain troquem por miúdos as complexidades financeiras que estão em causa na história. “A Queda de Wall Street” é o primeiro filme sobre a crise feito em estilo de comédia pop e cool. Os actores, que interpretam personagens reais e inventadas, mas todas irresistíveis, são fundamentais para o sucesso do filme, e a excentricidade do elenco rima com a das figuras que personificam, ou não tivessem estas visto o que vinha aí antes de todos aqueles que trabalhavam nos luxuosos castelos de vidro e aço do mercado financeiro.

[Entrevista com Steve Carell]

Christian Bale é Michael Burry, um médico com um olho de vidro, alérgico a fatos, gravatas e sapatos, um fraquinho por “death metal”, vocação para a bateria e uma absoluta falta de capacidade de relacionamento social, que lidera uma sociedade de investimentos e, depois de ter um palpite e fazer pesquisas e contas, percebe que o mercado do imobiliário vai dar o berro. O brilhante Steve Carell faz de Mark Baum, o bilioso e tragicómico director de um pequeno fundo de investimentos, sempre a disparar contra a corrupção de Wall Street, que se alia, mais a sua equipa, ao cínico Jarred Vennett, do Deutsche Bank, para capitalizar com o cataclismo. E Brad Pitt dá corpo ao desiludido banqueiro reformado Ben Rickert, que se junta aos jovens Charlie Geller (John Magaro) e Jamie Shipley (Finn Witrock), que têm escritório numa garagem e também perceberam que o edifício do mercado vai desabar, tendo até tentado, sem sucesso, alertar os media. Eles são os nossos guias nos meandros do cataclismo colectivo que deixou milhões sem economias, emprego nem casa.

[Entrevista com Christian Bale]

A grande ironia de “A Queda de Wall Street” é que este punhado de personagens esclarecidas com as quais vamos descobrindo as descomunais proporções da crise, os seus pormenores mais absurdos e os seus protagonistas mais amorais, inconscientemente optimistas ou irresponsáveis (ver as cenas de Carell no clube de “strip” ou no fórum de investidores em Las Vegas), cuja justa indignação contra as manigâncias e a impunidade de Wall Street partilhamos, e pelas quais torcemos, vai acabar por lucrar com a queda dos banqueiros contra os quais investiram, e com a desgraça de milhões de pessoas anónimas. O dilema da personagem de Steve Carell mesmo no final, posta entre ficar sem cheta mas com a consolação que sempre teve razão, ou arrecadar as dezenas de milhões de dólares que lucrou com a sua ousadia, ilustra bem a situação. (Nas entrelinhas, o filme também faz a pergunta: O que teríamos nós feito no lugar deles?).

[Entrevista com Michael Lewis, autor do livro]

No epílogo, o filme informa-nos que quase todos os protagonistas, embora tenham lucrado com o crash financeiro, afastaram-se do sistema, e alguns foram investir em pequenos negócios e sectores económicos alternativos, que Shipley e Geller tentaram processar as agências de notação, mas não conseguiram, que praticamente nenhum dos principais envolvidos no escândalo financeiro foi preso e que a especulação com os swaps está de regresso, só que agora estes têm outro nome. Será que dentro de poucos anos teremos nos cinemas “A Queda de Wall Street – Parte II”?

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