Banda: Deolinda
Álbum: Outras Histórias
Editora: Universal
Fazer canções porque são coisas de boa estima. Queríamos todos, até os que dizem “não, nunca pensei nisso, o que sempre quis foi ter um bom emprego”. Ora bem, essa é que é a questão. Fazer canções com classe é dos melhores empregos que pode haver. É compor com cuidado íntimo e apaixonado algo que vai ser de todos, sem reservas, quantos mais aparecerem melhor, porque tudo isto serve para fazer a festa. Esta sexta-feira os Deolinda põem à solta um precioso jogo de palavras e sons que tem tudo para ser uma das farras deste ano — e ainda vai isto no fevereiro que se vê. Ouvir os quatro que fizeram o novo álbum, “Outras Histórias”, é vê-los a jogar a sirumba com todos lá da rua. Daí que seja a mesma Deolinda mas diferente ao mesmo tempo. É um encontro de melhores amigos com novas histórias e o resultado é valioso.
Que ninguém se chegue a “Outras Histórias” com medo de encontrar uma Deolinda diferente. Vai lá estar tudo o que sempre esteve, a mesma mania de fazer pop com tiques de rua boémia, tascas vadias e tradição, mais as guitarras que mandam em tudo menos na voz de Ana Bacalhau. Há o bailarico de mão na anca, a dança de roda, os santos populares fora de época porque a época certa escolhemo-la nós; mais os garotos que depressa são gente grande e têm histórias de beijinhos para contar. Mas depois há o resto. E é um resto vasto e generoso. Nota-se que isto é gente que sempre gostou de música, que ainda não sabia afinar uma corda e já brincava às estações de rádio com um gravador manhoso e cassetes do mesmo calibre. Levam tudo isso para o estúdio, sempre levaram, mas ainda não o tinham feito com esta gana de ir a todas.
A “Avó da Maria” tem uma bateria desenhada para embalar multidões em festivais (já faltou mais), de braço dado com um conto corriqueiro de uma família pitoresca. É pop-rock de coletividade e ainda bem. O “Bote Furado” parece uma marcha saída da Bahia, é um carnaval com tom sindicalista no ritmo, como esta galera tão bem sabe fazer. Mais a “Canção Aranha”, a explicar-nos que a bossa nova tem tanto de português como de malandragem – ou então o bom malandro é português, sempre o soubemos, ouvi-lo em forma de canção sabe ainda melhor. E o “Berbicacho” vem de braço dado com um bombo, com um pisar de campos e copos à espera. É só um estereótipo mas aqui ninguém leva mal. É entornar mais um.
E há ainda os convidados especiais, que aparecem no disco como quem vai jantar a casa de quem lhes quer bem: não fazem cerimónias nem escondem manias mas também não estranham o sofá dos outros. “A Velha e o DJ” tem Riot pelo meio, o mesmo dos Buraka Som Sistema e das noites vindas de outros calores para o meio de Lisboa. É tudo o que não se esperava dos Deolinda mas só até começar. “A pouco a pouco ela já domina a pista”, canta Ana Bacalhau, sobre a personagem da canção (a velha que anda enrolada com o tipo dos discos, uma maravilha) mas também podia ser sobre a pobre rica Deolinda, transformada em fã de kuduro. Sabe os passos todos, é o tal dom que estes músicos têm em fazer bons vizinhos em todos os bairros.
Outra das visitas é a de Manel Cruz, que faz de “Desavindos” a sua sala, de estores para baixo e cigarros mal apagados. Dores de amor, “se é mesmo o que quero vou adiando”, e sempre com a mania de cantar tudo com um cobertor na garganta, como quem diz que está tudo mal mas não importa, está-se bem ali, não vamos a lado nenhum. O que não vai tardar é isto transformar-se num dueto-fenómeno, daqueles para decorar e aplaudir com o telefone no ar quando estiverem todos juntos nos palcos esgotados que vão querer apresentar tudo isto às multidões. É tão certo como este disco merecer toda a nossa atenção.
Sejam só eles, os da Deolinda, ou com amigos de fora, o que nunca se perde é o cuidado na escrita da cada tema. A assinatura de todas as músicas e letras é de Pedro da Silva Martins, agraciado pela bênção do artesanato pop como é raro ver. Imaginamo-lo a desfazer-se em detalhes, em exigências, num contínuo “assim não que isto pode ficar melhor”. Ou então faz tudo sem esforço. Acreditamos mais na primeira hipótese, pelo menos sempre nos sentimos menos mal por não estarmos agora mesmo a escrevinhar as nossas próprias cantorias.
Palmas e palminhas, na dose certa são uma riqueza; coros, harmonias e outras virtudes das boas vozes; cordas elegantes e de ego controlado, que quem nelas mandou foi Filipe Melo, outro daqueles que não sabe falhar; mais a orquestra Sinfonietta de Lisboa para embalar três das 15 canções de “Outras Histórias”, o quarto álbum do grupo. Dissemos 15? Nem demos por ela.
Tiago Pereira é crítico de música do Observador.