Estávamos em 2011. As relações económicas entre Portugal e Angola eram cada vez mais estreitas e a cooperação bilateral era intensa em diversas áreas, como a Justiça. O Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), contudo, já recebia alertas do sistema financeiro português sobre suspeitas de branqueamento de capitais em transferências bancárias milionárias de figuras do regime angolano para Portugal. Orlando Figueira, procurador do DCIAP, ficou encarregue de alguns desses processos. Pouco tempo depois disso, participou em ações de formação de magistrados angolanos e começou a proferir palestras em Angola.
Orlando Figueira foi mesmo o convidado especial de João Maria de Sousa, procurador-geral da República de Angola, por ocasião do 30.º aniversário do Ministério Público angolano, em maio de 2011. Falando num painel dedicado às consequências sociais e económicas da corrupção e do branqueamento de capitais, Figueira era apresentado como um magistrado que lutava contra a corrupção, tentando sensibilizar os seus colegas angolanos para a mesma luta.
O combate à corrupção é um direito de cidadania”, afirmou Orlando Figueira, acrescentando que o analfabetismo existente em África potenciava aquele flagelo. “Homem que não sabe ler e nem escrever dificilmente reconhece que a corrupção afecta danosamente a concorrência empresarial e que, ao mesmo tempo, empobrece o Estado”, afirmou o procurador detido esta terça-feira pela Polícia Judiciária precisamente por suspeitas de corrupção.
Meses mais tarde, já em 2012, Orlando Figueira solicitou ao Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) um pedido de licença sem vencimento de longa duração que criou logo polémica. Com vários processos em mãos que envolviam importantes figuras angolanas suspeitas de crimes económicos, o procurador Orlando Figueira não mencionava qual o objetivo da sua saída do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), uma prática comum seguida por outros colegas. O caso foi discutido pelo próprio CSMP e o órgão disciplinar da magistratura do Ministério Público (MP) dividiu-se — mas a lei estava do lado do procurador.
O magistrado não estava obrigado a mencionar para onde ia, mas alguns dos seus colegas criticaram a sua atitude nos jornais. “É uma situação que mancha o MP”, afirmou um deles.
Começaram rapidamente a surgir notícias de que o magistrado iria deixar a investigação de crimes económicos para trabalhar no BIC, o banco de capitais angolanos que comprara o BPN. O magistrado apressou-se a negar a existência desta proposta de trabalho. O banco também. Orlando Figueira alegou que os cortes salariais na função pública, aliados a uma situação de “recém-divorciado” e às despesas de ter dois filhos na universidade o tinham feito escolher o setor privado. Nunca disse para onde.
Fonte do então CSMP afirmou ao Observador que o requerimento do procurador indiciava alguma “falta de transparência”. “Normalmente, quando solicitam estas licenças os magistrados dizem o que vão fazer. Se um doutoramento, se um trabalho na ONU, por exemplo. Embora, depois, não caiba ao CSMP confirmar se concretizam o que dizem”, afirma. No entanto, Orlando Figueira não estava a violar qualquer lei. O estatuto do MP é omisso quanto às licenças sem vencimento, logo, vale a lei do trabalho para as funções públicas. E esta não obriga os funcionários a dizerem quais os motivos dos pedidos de licença.
O então procurador-geral da República, Pinto Monteiro, recorda ao Observador que na altura defendeu que os magistrados nestas condições passassem por “um período de nojo”, para não serem acusados de utilizarem no setor privado a informação obtida nos processos. Pinto Monteiro diz, no entanto, não se lembrar do procurador em causa nem dos casos que Orlando Figueira tinha em mãos. Sabe apenas que eram processos “complexos”.
“Mais do que questionar as funções que o procurador assumiu, devia era existir um regime remuneratório de carreira para manter os magistrados. No ano em que o procurador em causa pediu licença, houve mais procuradores e juízes a fazê-lo por causa dos cortes salariais”, diz, por seu lado, António Ventinhas, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. Ainda assim, reconhece o procurador, “não deixa de ser preocupante que um magistrado possa usar os seus conhecimentos, mesmo na defesa de clientes”.
No dia em que arquivou, pediu para ser afastado
Um dos inquéritos liderados por Orlando Figueira relacionava-se com suspeitas de branqueamento de capitais na compra do BES Angola (BESA) e foi arquivado a 15 de fevereiro de 2012. Foi precisamente nesse dia que o próprio procurador pediu à sua coordenadora, Cândida de Almeida, para ser afastado de todos os processos relacionados direta ou indiretamente com Angola.
No despacho de arquivamento, como veio a noticiar a revista Sábado, o procurador até usou uma expressão de Fernando Pessoa: “Não é o trabalho, esforço inútil, persistir do esforço até ao fim, e saber reconstruir uma orientação quando se verificou que ela era, ou se tornou, errada”. Era assim que prescindia da carta rogatória enviada semanas antes às autoridades angolanas na tentativa de saber quem estava, afinal, por trás da empresa Portmill Investimentos e Telecomunicações S.A., que comprara 24% do BESA em finais de 2009, por 375 milhões de dólares.
As suspeitas no negócio foram comunicadas à Procuradoria-Geral da República via CMVM, acompanhadas de quatro textos do jornalista angolano Rafael Marques publicados na Internet. Marques levantava dúvidas relativamente aos acionistas da Portmill, alguns oriundos das Forças Armadas angolanas e sem património conhecido.
A investigação começou em março de 2011 pelas mãos da Unidade Nacional de Combate à Corrupção da PJ — a mesma que agora investiga se Orlando Figueira recebeu dinheiro para arquivar processos — por suspeitas de crimes de corrupção, tráfico de influência, branqueamento de capitais e associação criminosa. Em junho de 2011, o relatório da PJ enviado a Orlando Figueira, coordenador da investigação, sugeria que fossem pedidas ao BES todas as cópias dos documentos usados para celebrar o negócio. O magistrado concordou e decretou a quebra do sigilo bancário. Só em novembro o BES viria a responder que a Portmill não tinha conta naquele banco e que o pagamento tinha sido feito através de uma conta do BESA.
Na altura, o advogado Paulo Blanco — cujos escritórios foram também esta terça-feira alvo de buscas — prestou voluntariamente esclarecimentos ao Ministério Público. Disse que o administrador da empresa era Zandre Campos e que tinha feito o negócio com recurso a um financiamento. O MP insistiu para saber quem eram os outros acionistas, sem sucesso. Menos de duas semanas depois, a 15 de fevereiro, o processo era arquivado, por não se perceber quem eram todos os acionistas e de onde tinha vindo o dinheiro.
Paralelamente, o procurador tinha em mãos o processo que colocou Álvaro Sobrinho, então presidente do BESA, como arguido por suspeitas de uma fraude investigada em Angola. Em causa uma alegada burla de cerca de 110 milhões de euros ao Banco Nacional de Angola e da qual parte do dinheiro teria vindo parar a Portugal. Foi Orlando Figueira quem determinou, em 2011, o arresto dos bens de Álvaro Sobrinho. Um pedido validado pelo juiz Carlos Alexandre.
De procurador a advogado e assessor
Advogado, assessor jurídico, compliance. Terão sido estas as suas escolhas após ter abandonado o DCIAP com uma licença sem vencimento de longa duração, segundo o currículo publicado na página de Internet do escritório de advogados que agora integra. Funções que terão levantado suspeitas e motivado a investigação.
É que Orlando Figueira, mal abandonou o DCIAP, integrou o departamento de compliance do Millennium BCP — que tem o grupo Sonangol como principal acionista –, o que significa que lhe cabia, entre outras funções, prevenir a prática de qualquer ilícito penal ou administrativo por parte dos funcionários. Na altura, ao Expresso, o magistrado deixou claro que nunca investigou aquele banco. “Não tenho nada a esconder e considero que esta questão está apenas relacionada com a minha vida pessoal”.
Em 2014, passou a exercer funções de assessor jurídico do presidente executivo do ActivoBank (pertencente ao Grupo BCP). “O ActivoBank esclarece que o referido alvo da investigação não é quadro do banco mas sim um consultor externo que fornece serviços esporádicos de consultoria jurídica”, afirmou ao Observador fonte oficial do banco.
Também em 2014 terá começado a colaborar com o escritório de advogados BAS — cuja sede, localizada na rua da Artilharia Um, em Lisboa, foi igualmente alvo de buscas. No site oficial do escritório, Orlando Figueira é apresentado como um especialista na área da criminalidade económica-financeira, especialmente em crimes como “fraude fiscal, branqueamento de capitais, crimes cometidos por funcionários no exercício de funções públicas, nomeadamente corrupção, peculato, participação económica em negócio; prevaricação, bem como tráfico de influência e administração danosa”, lê-se no site da BAS.
Contactada pelo Observador, fonte oficial da BAS confirmou as buscas realizadas pela autoridades e enfatizou que, ao contrário do que pode ser interpretado pela leitura do site da sociedade, Figueira não é sócio da BAS. “Não integra a BAS. É um consultor externo que tem um espaço arrendado e exerce atividade principal no Millenium BCP”, afirmou fonte oficial, repetindo uma posição oficial semelhante à do Activo Bank. Em comunicado enviado para o Observador ao final do dia, a BAS recusa qualquer relação com o caso judicial, diz que “exerce a sua atividade na estrita obediência pelos mais elevados padrões de ética e rigor e em respeito pelas regras deontológicas” e assegura que colaborou com as autoridades judiciais.
A BAS foi fundada por Pedro Madeira Brito e Artur Filipe da Silva no âmbito de uma cisão da sociedade Barroca Alves Pereira. Um dos sócios deste escritório é Diogo Lacerda Machado, futuro administrador da TAP por indicação do Governo PS. Lacerda Machado foi secretário de Estado de António Costa no Ministério da Justiça.
Suspeitas e suspeitos
O inquérito que esta terça-feira levou à detenção de Orlando Figueira tem o nome Operação Fizz e trouxe para a rua, segundo um comunicado da Procuradoria-Geral da República, “11 procuradores, 8 juízes e 60 inspectores da Polícia Judiciária” — números pouco comuns e que indiciam claramente uma operação em larga escala. Orlando Figueira foi detido e deverá ser ouvido ainda esta terça no Tribunal Central de Instrução Criminal,
Crimes sob suspeita? “Corrupção activa e passiva na forma agravada, branqueamento de capitais e falsidade informática”, assegura a PGR.
Arguidos? Além de Orlando Figueira, suspeito de corrupção passiva, o advogado Paulo Blanco foi igualmente constituído arguido por suspeitas de co-autoria do crime de corrupção activa. Segundo o Expresso, o crime é igualmente imputado a Manuel Vicente, vice-presidente de Angola.
Segundo informação do Correio da Manhã, Orlando Figueira terá recebido cerca de 1 milhão de euros para arquivar os inquéritos e processos administrativos contra figuras do regime angolano. Ao Observador, fonte do Ministério Público nega que seja esse o valor em causa.
Paulo Blanco diz ao Observador que prestou “toda a colaboração e esclarecimentos necessários, tendo sido facultada toda a documentação solicitada pelas autoridades”, recusando-se a prestar mais declarações por o processo estar em segredo de justiça.
O Banco Comercial Português (BCP), o Banco Privado Atlântico, o ActivoBank, a Primagest (uma sociedade pertencente à Sonangol), os escritórios de advogados BAS e de Paulo Blanco foram alguns dos locais alvo de buscas por parte do Ministério Público e da Polícia Judiciária.
No centro da investigação, para já, estarão pagamentos alegadamente feitos a Orlando Figueira para arquivar um inquérito relacionado com Manuel Vicente, vice-presidente de Angola e ex-presidente da Sonangol, tal como o semanário Sol avançou ao início desta tarde e o Observador confirmou junto de fontes judiciais. Contudo, o MP não afasta outras linhas de investigação que levem a mais suspeitos.
O inquérito judicial que Orlando Figueira terá arquivado a troco de alegadas contrapartidas monetárias, por sua vez, está relacionado com suspeitas de branqueamentos de capitais a propósito da compra de diversos apartamentos num complexo residencial de luxo na zona de Cascais por parte de Manuel Vicente. O valor total das transferências de Vicente, que atingiram uma soma total de cerca de 8 milhões de euros, chamaram a atenção do sistema financeiro português, que emitiram o respetivo alerta, obrigatório devido a lei da União Europeia, para a Polícia Judiciária. Sendo uma pessoa politicamente exposta (nome técnico para titulares de cargos políticos), Manuel Vicente é alvo de um escrutínio especial por parte dos sistemas financeiros europeus.
O DCIAP abriu um processo administrativo para avaliar a hipótese de ter sido praticado o crime de branqueamento de capitais, existindo suspeitas suficientes para que fosse aberto um inquérito criminal que foi distribuído a Orlando Figueira.
Chamado a justificar a origem dos rendimentos que financiaram a aquisição dos apartamentos localizados na zona do Estoril, Manuel Vicente, através do seu advogado Paulo Blanco, terá juntado ao processo declarações de empresas para as quais Vicente trabalhou antes de entrar para o governo angolano: Sonangol (empresa estatal angolana de petróleo que foi presidida por Vicente), Banco Africano de Investimento eMillenium BCP (banco participado pela Sonangol). No total, Vicente teria recebido remunerações de cerca de oito milhões de euros destas entidades – valor idêntico ao da aquisição dos andares em Cascais. Explicação que Orlando Figueira terá entendido como satisfatória, tendo arquivado o inquérito contra Manuel Vicente.
Tais documentos, contudo, terão sido restituídos a Paulo Blanco por ordem de Orlando Figueira, desaparecendo do processo. Estes documentos foram esta terça apreendidos no escritório do advogado.
A investigação a Orlando Figueira está a ser promovida pela Unidade Nacional Contra a Corrupção (UNCC) e acompanhada pelo atual diretor do DCIAP, Amadeu Guerra, segundo o Diário de Notícias.
Advogado de políticos e do PGR de Angola
Paulo Blanco representou os interesses da República de Angola em diversos processos que foram alvo de investigação por parte de Orlando Figueira.
Nas queixas enviadas pela Procuradoria-Geral da República (PGR) de Angola para a sua congénere portuguesa contra, por exemplo, o empresário Álvaro Sobrinho (ex-presidente do Banco Espírito Santo de Angola) e três advogados e empresários portugueses acusados de desviarem 500 milhões de euros do Estado angolano que serviriam para adquirir uma parte do capital social do Banif, Paulo Blanco foi o advogado que representou os interesses da PGR de Angola. Ajudou a PGR a constituir-se como assistente e acompanhou o andamento dos processos.
Além de Manuel Vicente, Blanco foi igualmente advogado de Hélder Vieira Dias, general angolano mais conhecido por ‘Kopelipa’, e de João Maria Sousa, igualmente general e procurador-geral de Angola, nos processos judiciais que foram abertos no DCIAP por suspeitas do crime de branqueamento de capitais. Contando com Manuel Vicente, trata-se de três figuras muito relevantes do regime liderado por José Eduardo dos Santos, sendo que a abertura dos processos no DCIAP em 2013 devido a alertas do sistema financeiro português fizeram tremer as relações entre Portugal e Angola.