“Está na altura de acabar com a franchise Star Wars?”, pergunta o crítico da New Yorker, Richard Brody, a propósito de “Rogue One”, o quadragésimo-nono capítulo do filme sobre… sobre… portanto… aqueles peluches engraçados, aquele robô amaneirado, a princesa, o peludo e o bonzinho com ar de Lagoa Azul no espaço. Peço desculpa, é que, até hoje, só vi meia-hora do primeiro filme, que agora sei que se chama “Uma Nova Esperança” apesar de não perceber porque é que era o Episódio IV (onde é que estavam os outros três?).

Claro que conheço a música (ta-ra-ta-ta-ran, ta-ra-ta-ta-ran, ta-ran-tan-tan, estão a ver – ou esta será a do Super-Homem?), o genérico com as letras a desaparecerem no espaço, sei que o Darth Vader estava do lado certo da força e depois passou para o lado negro, que é pai do outro, o que é um sabre de luz, que há a República e o Império – que bem podiam ser duas cervejarias ali nas avenidas novas – que o Yoda é um jedi que fala de uma maneira engraçada e é dos melhores para fazer memes, que a história tem contornos shakespeareanos e, ao mesmo tempo, melodramáticos, que é também um comentário à situação política durante a Guerra Fria, que é um bocadinho telenovela com irmãos separados à nascença e revelações bombásticas a meio da trama.

Sei todas estas coisas quando, na verdade, só vi “A Vingança dos Sith” (sexto filme, episódio III), numa altura em que trabalhava nos cinemas, e até achei o filme razoável. Isto significa que Star Wars, mais do que um filme – ou uma série de filmes –, se transformou num fenómeno cultural com o qual é possível ter uma relação sem nunca termos visto sequer os filmes. Na altura, em 2005, senti-me tentado em meter os papéis para aderir à grande família de maluquinhos starwarsianos. Via-os na fila para os bilhetes e para as pipocas com aquela ansiedade benigna de quem se prepara para um reencontro há muito aguardado e sentia alguma inveja por não me poder dissolver naquele rebanho feliz. Por muito individualistas que sejamos, há sempre um momento em que a sereia do gregarismo nos chama e nós queremos ir. Mas, por vezes, não podemos.

Aqueles indefectíveis, para quem Star Wars é uma espécie de Bíblia ou Alcorão – um conjunto de filmes sagrados com todos os ensinamentos morais necessários para que consigamos sobreviver neste mundo de trevas – e George Lucas o seu profeta, não estavam unidos por laços de sangue, mas por algo talvez ainda mais forte: as memórias afectivas. Tinham visto o filme quando eram pequenos, conviviam com o zoo de Lucas desde a creche, tinham usado vassouras como sabres de luz e tinham sonhado em pilotar a Millennium Falcon. Não estavam ali para descobrir como é que Anakin Skywalker se transformou em Darth Vader. Estavam ali numa missão bem mais espinhosa: descobrir para onde raio é que tinha ido a infância deles. Ora, como Star Wars não tinha feito parte da minha infância, nenhum esforço racional empreendido em idade adulta me poderia aproximar e, muito menos, tornar-me membro daquela família.

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Coisas de miúdos

Infância, infância, eis a chave deste mistério. “’New York, New York’ é um filme para gente crescida, o teu é só um filme para miúdos, ninguém o vai levar a sério.” Sabe quem que é disse isto a George Lucas? Foi a mulher dele, Marcia. Se, por um lado, não teve razão – o filme foi levado a sério por muita gente – por outro, teve toda a razão: Star Wars é só um filme para miúdos, concebido e realizado pelo mais desinteressante e infantil dos gloriosos malucos das máquinas de filmar que, nos anos 70, tomaram conta de Hollywood (até Michael Cimino ter dado cabo de tudo). Pondo as coisas em perspectiva, pensemos nos filmes que os seus contemporâneos fizeram naquele período: “Cavaleiros do Asfalto”, “Taxi Driver”, “Alice Já Não Mora Aqui” (Scorsese), “Os Incorruptíveis contra a Droga” e “O Exorcista” (Friedkin), “Duel” e “Tubarão” (Spielberg), “Carrie” (Brian De Palma), “Padrinho” I e II, “O Vigilante” (Francis Ford Coppola).

É verdade que Lucas realizou “American Graffiti”, mas em comparação com aqueles filmes, Star Wars parece uma coisa saída da cabeça de uma criança de cinco anos. Por muito que se racionalize – a eterna luta do Bem contra o Mal, Shakespeare no espaço, a Mitologia, o Universo – o segredo do sucesso do filme é o facto de ser básico: básico na moralidade, básico na representação das personagens, básico na criação de um universo sem zonas cinzentas.

Não se trata de uma interpretação destrutiva ou especialmente maldosa, este simplesmente foi o projecto de George Lucas desde o início e o seu grande mérito foi ter conseguido transpor para o grande ecrã de forma tão eficaz a sua ideia inicial: “Graffiti era para os que tinham dezasseis anos; este [Star Wars] é para os de dez e doze anos, que perderam algo ainda mais significativo do que os adolescentes. Vi que os miúdos de hoje não têm nenhuma vida de fantasia como nós tínhamos – não têm Westerns, não têm filmes de piratas. […] Queria fazer um filme para miúdos que trouxesse uma moralidade básica, ‘Ei, isto é certo e isto é errado’”, disse Lucas, citado por Peter Biskind no livro Easy Riders, Raging Bulls. Ainda antes de o filme ter saído, o realizador não tinha dúvidas sobre o que tinha feito: “Fiz o que considero ser o tipo de filme mais convencional que posso fazer.”

É claro que uma coisa é o que o criador tem em em mente e outra bem diferente são as reacções que a obra acaba por suscitar e todas as interpretações feitas a posteriori. E o efeito de Star Wars – na indústria do cinema e na cultura popular – foi o de um sismo de grande magnitude, que alterou as regras do jogo, mostrou aos executivos onde estava a mina de ouro – merchandising, sequelas, infantilização – e atirou os realizadores “adultos” para as margens. O próprio George Lucas ficou surpreendido com o sucesso e pelo alcance da sua mitologia de “moralidade básica”. A tal ponto que, a certa altura, também ele parece ter acreditado na suposta profundidade filosófica do seu universo. Não foi o único. Há quem, por esse mundo fora, siga a religião Jedi.

Não quero racionalizar a indiferença que a saga Star Wars me inspira. Parece-me um exercício tão fútil quanto o de alguns fanáticos que procuram razões profundas – a raiar o esotérico – para justificar a sua devoção… infantil. E é tudo muito simples. Eles viram o filme com a idade certa e eu não. A resposta deles à pergunta do crítico da New Yorker será: “Blasfémia! Nunca!” A minha é: “tanto faz.”

Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor do romance “As Primeiras Coisas”, vencedor do prémio José Saramago em 2015