Reajo a uma pessoa que nunca viu a “Guerra das Estrelas” como reajo a alguém que, sendo de uma localidade longínqua como, sei lá, Vendas Novas, nunca viu o mar: não percebo muito bem como viveram até aqui. Como é que não têm, ao menos, curiosidade. Uma pessoa pergunta-lhes: “Mas não gostavas de ver?” E elas encolhem os ombros e soltam uma interjeição qualquer que, numa sílaba, declara que, eventualmente, se a situação se proporcionar e alguém lhes estiver a segurar as pálpebras diante do oceano Atlântico ou do episódio V, “O Império Contra-ataca”, são capazes de ver qualquer coisa, mas não se vão esforçar muito por isso.

Tendo a achar, porém, ao contrário do que muitas vezes se vê fazer, que não é falando com demorada veneração sobre todo o pormenor da série que se convence um leigo a entrar. Pelo contrário: suspeito que é essa aura de igreja universal que tem mantido muito respeitável espectador longe da saga dos Skywalker. Para eventual escândalo de uns e, oxalá, proveito de outros, direi o seguinte: a “Guerra das Estrelas” calhou. Aconteceu. Foi sorte. É uma série de coincidências felizes. Mas é do caraças.

Passo a explicar.

Está a ver aquelas pessoas que levam a “Guerra das Estrelas” muito a sério e que acham mesmo que o George Lucas tinha tudo planeado desde o início? Que só produziu os filmes por determinada ordem porque, no início, ainda não havia a tecnologia suficiente para fazer o que ele queria fazer? Não as deixe casarem com a sua irmã. É para lá de público que, quando Lucas estreou o primeiro “Guerra das Estrelas”, em 1977, não tinha o menor projecto para sequelas, quanto mais para prequelas e spin-offs. Não havia plano nenhum. Não havia nenhum guião para futuro, nenhum compromisso com actores ou técnicos nesse sentido, a rodagem tinha corrido mal e toda a equipa ficou estúpida quando viu filas de espectadores a darem a volta aos quarteirões para assistirem ao filme. Tudo o que Lucas queria fazer, já o disse e repetiu, era uma space-opera à maneira de “Flash Gordon”. Ponto final.

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O que é extraordinário em “Star Wars” é a feliz coincidência de tudo aquilo. Um guião que criava uma história à qual chegávamos a meio e que era a porta para um universo enorme que só pressentíamos e haveríamos de ir descobrindo aos poucos. O genial trabalho de direcção artística que criou naves, robôs e mundos palpáveis, que nos transportavam para uma realidade alternativa e não apenas para o contrato com uma ilusão. Um grande actor como Harrison Ford safando o que poderia ter sido o gigantesco fracasso de ter um protagonista sem carisma como Mark Hamill. O trabalho dos designers que criaram aquela fonte fantástica e toda a estética dos créditos do filme, desaparecendo entre as estrelas. A coincidência de alguém ter desenhado o extraordinário fato de Darth Vader, de um técnico de som se ter lembrado de criar aquele efeito para a respiração do vilão, o som dos sabres de luz batendo um contra o outro, John Williams ter composto uma banda sonora incrível, James Earl Jones ter aquela voz… Foi um casamento feliz, muito feliz, que tinha ainda um pano de fundo levantando-se e abrindo, de quando em vez, na escuridão, deixando passar vislumbres do tema da fé, da Força, do bem e do mal, dos cavaleiros jedi e do equilíbrio do Universo. Um tema tão poderoso quanto pouco aprofundado, ou teria dado desastre, como se viu quando George Lucas, sem a sorte de outrora, se espatifou fazendo a trilogia das prequelas.

Tudo o que aconteceu nos três filmes originais ter acontecido e ter-se encontrado, da forma como aconteceu e se encontrou, é que fez da “Guerra das Estrelas” a “Guerra das Estrelas”: uma obra canónica da civilização ocidental, pilar da cultura pop, conto arquetípico da moral dos miúdos que têm hoje de 50 anos para baixo.

Demasiado geek?

Dito assim, ainda parece demasiado seita? Ponhamos, então, a coisa doutra forma: nunca senti tanto medo como da primeira vez que vi Darth Vader. Medo, pavor, um terror de gelar a espinha – quando Darth Vader passa, com a respiração criada pelo técnico, os passos de David Prowse, a voz de James Earl Jones, a música de John Williams, o mistério mágico, indecifrável, do rosto e da história que desconhecemos, dentro daquela silhueta de gigante de outros tempos. Nunca me senti tão órfão como nos momentos após a morte de Obi-Wan. Um sentimento de absurdo de quem se recusa a acreditar; de quem não consegue encaixar, no seu quadro de valores, tamanha injustiça e tamanho revés. Um abandono, uma solidão, uma vulnerabilidade, que nos lança ao mundo, à idade adulta. E senti a excitação, o empolgamento das sequências de acção, nos sabres de luz radiosos e claros dos bons lutando contra os vermelhos sanguinolentos dos maus… O sabre de luz que era, por si só, o sonho de toda uma infância, o santo graal dos brinquedos, impossível de ter e que, no entanto, entrou em tantas brincadeiras, imaginado pela nossa cabeça e completado com os efeitos sonoros especialmente produzidos pela nossa boca.

Há arte que descobrimos em adultos e que é muito importante pelo que nos faz pensar, mas aquela que nos forma, aquela que nunca esqueceremos, é a que nos faz sentir. E com “Star Wars” sentimos muito. Sentimos quase tudo. Muito do que fomos e do que quisemos ser enquanto crescíamos estava ali. As lições sobre o dever e a tentação, a atracção do mal e do perigo, o exemplo do companheirismo, a importância da esperança, a hipótese do bem e da redenção (curiosamente, não está lá nada de especial sobre o amor ou o sexo, mas isso já será, porventura, tema para outra crónica).

Se um adulto que se estreasse hoje, a ver a “Guerra das Estrelas”, ainda poderia sentir tudo isto? Sendo adulto, com tantos preconceitos e expectativas formados e calcificados sobre a série e tão imunizado já pelas influências que “Star Wars” derramou sobre toda a cultura pop ao redor? Duvido. Duvido muito. Como duvido de qualquer tentativa de spin-off, prequela, sequela ou afim. Mas não posso – não se pode – negar a ninguém o direito de também brincar e sonhar com sabres de luz.

Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).