Cavaco Silva não admite a hipótese de ser chamado como testemunha aos autos da Operação Marquês para abordar a relação entre o Governo de José Sócrates e os negócios da Portugal Telecom. O distanciamento entre o Presidente da República (PR) e a comunicação social é, nas palavras de Aníbal Cavaco Silva, “fundamental para a dignidade do exercício da função”. Uma afirmação que pode ser vista como uma crítica a Marcelo Rebelo de Sousa que tem procurado uma atenção mediática diária. Em entrevista ao jornal Público, o ex-Presidente da República reiterou a importância de “manter a total independência do PR em relação à comunicação social”. Em cima da mesa estiveram ainda temas como as “múltiplas campanhas insidiosas do PS”, o BPN e os governos de José Sócrates e de Pedro Passos Coelho. Na base da entrevista está o livro assinado pelo próprio, “Quinta-feira e outros dias”.
Cavaco Silva diz que livro é “prestação de contas” apoiada em “factos rigorosos”
Testemunhar na Operação Marquês? “É um absurdo”
Falando sobre a hipótese de o Ministério Público chamá-lo a depor a propósito da Operação Marquês e de algumas situações relacionadas com a Portugal Telecom descritas no livro, Cavaco Silva diz considerar a pergunta um “absurdo”. “Eu já tive ocasião de dizer uma vez na televisão que em nenhuma reunião com o primeiro-ministro alguma vez detetei qualquer comportamento que violasse as normas”.
Como digo, o meu livro não trata dessas matérias, é um livro que trata da minha prestação de contas, daquilo que se passou comigo durante um certo período que está muito bem definido e que está muito bem registado”.
Cavaco Silva relata no seu livro que o ex-primeiro-ministro José Sócrates pediu-lhe para intervir junto do Parlamento para que a Comissão Parlamentar de Inquérito ao negócio de compra da TV por parte da Portugal Telecom fosse suspensa. Tal negócio esteve sob investigação judicial no caso Face Oculta, o que motivou a extração de certidões para abertura de uma investigação a José Sócrates — matéria que não teve seguimento por decisão do então procurador-geral Fernando Pinto Monteiro.
Eu tinha comentado uma notícia que tinha aparecido de que a PT ia comprar uma participação forte na TVI. E depois foi feito um inquérito sobre essa matéria. O primeiro-ministro pensou que, estando a correr o inquérito sobre a PT no Parlamento, ela sentia-se mais frágil para defender os interesses estratégicos nacionais.
Os jornalistas do Público insistiram em saber se Cavaco admitia a possibilidade de ser chamado a depor como testemunha na Operação Marquês, o que mereceu a seguinte resposta ao entrevistado: “É um absurdo”.
“Durante 10 anos, nunca telefonei a um jornalista”
“Durante 10 anos, nunca telefonei a um jornalista. Eu sei que há muitos políticos que telefonam com frequência. É a minha interpretação do exercício do mandato: independência de todos os poderes, sejam corporações económicas, seja do meio jornalístico, seja de partidos. Acho que desempenhei a função com muita isenção”, afirmou Cavaco Silva, no que pode ser visto como uma crítica ao atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Desde que chegou a Belém, fez um ano no início do mês, Marcelo Rebelo de Sousa apareceu em 118.247 notícias, segundo apurou à data um estudo realizado pela Cision.
“As múltiplas campanhas insidiosas do PS”
Cavaco Silva abordou ainda com pormenor aquilo que considera ser uma campanha de “calúnias, mentiras e insinuações” orquestrada por elementos do PS e do Governo de José Sócrates em relação a alegadas irregularidades fiscais da sua casa no Algarve e outras situações que marcaram a pré-campanha eleitoral das presidenciais de 2011.
Sobre a minha casa no Algarve, um absurdo total. Sobre a doença gravíssima que eu teria. Desculpe, essa campanha foi de uma violência, quanto a mim, foi de uma violência tal que muitos se surpreendem como é que eu consegui ganhá-la. Foi de uma violência muito grande. Eu até desculpo aí o Manuel Alegre, tenho consideração por ele e acho que foram pessoas do PS”.
Os jornalistas do Público questionaram Cavaco Silva sobre a identidade das pessoas que estariam por detrás dessas campanhas mas o ex-presidente não quis adiantar pormenores. “Não, não tenho informação para dizer. Aí o que eu digo é que a informação que me chegava é que elementos do PS, da campanha de Manuel Alegre, estavam por detrás dessas múltiplas campanhas insidiosas e caluniosas que foram montadas contra mim, que não foi só uma, foram várias. Foi uma campanha muito violenta, muito violenta. Pronto, no fim as virgens ofendidas vieram criticar-me pelo meu discurso de vitória”, afirmou.
Sobre o BPN
Sobre o BPN e a acusação de Jorge Lacão de que Cavaco Silva queria beneficiar os acionistas do BPN, o ex-PR respondeu:
Não respondo. Eu não conheço o que o dr. Jorge Lacão disse. Volto a dizer-lhe, este livro teve o objetivo de prestar contas.
Cavaco Silva, que discordou da nacionalização do BPN, explicou ainda a acusação que faz no seu livro sobre a “violação do sigilo bancário” das contas que tinha com a sua mulher naquele banco com objetivos e “intuitos políticos”. Questionado sobre se essa violação partiu do Governo de José Sócrates:
Não tenho informações de que fosse pelo Governo. Mas eu fui informado, recebi a informação. Não vou neste momento revelar quem, em termos mais coletivos do que apenas um individual, estava a fazer com que a minha conta fosse publicada, os seus movimentos [fossem] publicados na imprensa. Ainda por cima eu sou uma pessoa que, quando abro uma conta no banco fica lá vinte, trinta anos, às vezes sem mexer nas aplicações financeiras que são feitas. Mesmo depois da nacionalização eu não retirei os fundos que tinha lá. Só retirei quando, de facto, percebi.
As críticas ao modelo económico do Governo Sócrates
Cavaco Silva recordou ainda as críticas que sempre fez ao modelo económico seguido por José Sócrates de forte aposta num investimento público direcionado para as obras públicas na área rodoviária e ferroviária.
Penso que dei aí um importante contributo para evitar um erro que teria tido custos muito grandes para o país e que teria eventualmente acelerado tudo aquilo que acaba de referir. Porque logo a seguir temos também o TGV, a terceira Ponte sobre o Tejo, as auto-estradas. E aí havia uma discordância clara da minha parte em relação a esses investimentos naquilo que se chama os sectores de bens não transaccionáveis, os sectores protegidos. Era uma discordância muito clara, porque Portugal tinha um grande desequilíbrio externo, cerca de 10% do PIB. Tinha um grande endividamento externo, os mercados a fecharem-se, muita dificuldade em obter crédito e, portanto, havia uma orientação da política económica que eu considerava errada. Ia tentando convencer o primeiro-ministro a alterar, mas como é óbvio eu não consigo mudar a orientação global de política económica de um Governo.
O maior erro em 10 anos de Presidência
Questionado sobre qual foi o maior erro cometido em 10 anos de Presidência, Cavaco Silva disse que deveria ter sido ele, o PR, a encarregar José Sócrates de fazer diligências políticas aquando da formação do XVIII Governo Constitucional. E não o contrário, como veio a suceder:
Confesso um erro que cometi quando indiquei o eng. Sócrates para a formação do XVIII Governo Constitucional e que depois não cometi quando indiquei o dr. António Costa: devia ter sido eu a dizer que o encarregava de fazer diligências políticas para me apresentar um Governo consistente e duradouro. Mas permiti que fosse ele.
As críticas pelo timing de publicação do livro
Considerando a posição de Marques Mendes ou a de Assunção Cristas — ambos disseram publicamente que talvez a publicação do livro tivesse acontecido cedo demais –, Cavaco argumentou que escreveu o livro para “prestar contas aos portugueses” pela forma como executou as funções de PR.
Questionado ainda sobre se “leu ou ouviu” as respetivas críticas, o ex-PR disse:
Eu sou muito seletivo naquilo que leio e ouço. No período de férias, no mês de agosto, passo 30 dias sem abrir a televisão para ouvir notícias, algo extremamente saudável”.
“Saí bastante satisfeito e realizado”
Em entrevista, Cavaco diz que não saiu incompreendido de Belém, bem pelo contrário. “Saí bastante satisfeito e bastante realizado com a forma como realizei as funções de PR.” Considerando a gratidão (ou falta dela) do povo português, argumentou ainda que “os julgamentos vão ser feitos no dia-a-dia”.
A trepidação política, a espuma dos dias, o ruído mediático nunca influenciou as minhas decisões. Não me esqueço do que dizia Francisco Sá Carneiro – fui ministro das Finanças e do Plano dele: nunca confundam a opinião pública com a opinião publicada.
Sobre o Governo de Passos Coelho
“Foi no meu mandato que pela primeira vez um governo de coligação cumpriu integralmente o seu mandato, o que exigiu da minha parte uma atenção muito cuidada e uma intervenção em momentos críticos”, diz Cavaco Silva. O ex-PR afirma ainda que Pedro Passos Coelho “muito trabalhou para ultrapassar essas crises”.
Nesse Governo ocorreram algumas crises. Devo referir que o dr. Passos Coelho muito trabalhou para ultrapassar essas crises. Essa crise que refere foi a da demissão do ministro das Finanças, Vítor Gaspar, em que depois tentei promover um compromisso de salvação nacional, que se desenvolveu na parte negocial de uma forma positiva. E foram circunstâncias para além dos intervenientes na negociação que impediram que o compromisso se realizasse. Mas quero referir que isso já se refere ao meu segundo mandato, num tempo que, neste momento, ainda não quero contar.
Sobre a data de publicação do segundo volume das suas memórias enquanto Presidente da República, que será dedicado ao segundo mandato em que trabalhou com o Governo PSD/CDS liderado por Pedro Passos Coelho entre 2011 e 2015 e deu posse ao atual Executivo liderado por António Costa, Cavaco Silva não deu uma resposta definitiva. “Não sei. Ainda não decidi.”