É curioso que, há mais de dez anos, JP Simões tenha cantado sobre a sua geração num hino chamado “1970” e também ele se tenha munido de um instrumental com ascendência brasileira. Sempre existiu no compositor nascido em Coimbra uma especial ginga literária e musical, mas a canção que deu nome a um formidável disco permitiu-lhe caracterizar com elegante crueldade uma geração que, nas palavras de JP Simões, “brincou às mil revoluções amando gestos e protestos e canções” mas “estatelou-se docemente contra o céu”. É esta a geração quem o autor pergunta “o que é que te falta, agora que não te falta nada?”.
Saltamos um par de décadas e chegamos à geração de 1990. Atingiram a maioridade com a maior crise financeira dos últimos 80 anos, são os mais qualificados de sempre, vivem num país fundamentalmente melhor, têm cada vez mais mundo, procuram a redenção em ecrãs, têm tudo o que quiserem no bolso, fizeram de emojis e memes uma nova forma de conversar, vivem acompanhados mas tornaram-se mais solitários, choram a rir com a noção de um emprego para a vida, e, se lhes derem a password do wifi são capazes de congeminar revoluções, indignações e adorações de um momento para o outro.
Capitão Fausto e os gloriosos dias do rock tropical de auto-ajuda
Certo, passam as suas dificuldades e continuam a mirar um horizonte nublado, mas talvez sejam mais pragmáticos em relação à sua condição, mais dados à incerteza, mais conscientes de si mesmos, mais DIY e Open Source, mentalmente mais ágeis, e talvez por isso também, pela avalanche de possibilidades diante de si, mais irónicos em relação à sua condição, quando por exemplo aceitam classificar boa parte das suas agruras diárias como first world problems. Esta é também, e acima de tudo, uma geração que não se aborrece se eu não sustentar esta minha visão em dados da Pordata. É de louvar essa abertura de espírito. Mas a pergunta repete-se: o que é que lhes falta, agora que não lhes falta nada?
Se a canção-geração de JP Simões atingiu o flanco de uma geração de 70 atirada para o divã ou para o centro de emprego, os Capitão Fausto são hoje uma banda-geração de rapazes lisboetas bem formados que, há três anos, ainda mal tinham saído de casa dos pais e se debruçavam com a entrada na idade adulta por entre canções a reconhecer o peso da responsabilidade como quem molha os pés na Adraga numa manhã de Março. Os rapazes mergulharam em pelota e depressa se fez disso festa. Capitão Fausto Têm os Dias Contados deu ao mundo 8 canções-hino agarradas às saias que fizeram betos e adoradores de betos tatuarem “Amor de Mãe 2016” nos seus braços. As forças políticas e ideológicas que ponham os olhos nisto: o melhor momento de simbiose entre classes nos últimos anos começou com o verso “trabalhar nunca me fez bem nenhum”.
Encheram-se salas de espectáculos e acima de tudo confirmou-se o que já muitos suspeitavam desde o início: os betos são gente como nós; pelo menos é assim que cantam, com os problemas, dilemas e refrões de uma imensa classe média que podia estar melhor, mas também não vai mandar a saladinha de polvo para trás. É por isso que acontece o esvaziar de pulmões comunal quando se chega ao refrão:
“Pontas soltas
isso é comigo
para estragar o disco
tenho-me a mim”
Nunca foi só sobre Tomás Wallenstein, autor dos versos, mas sobre o crescente número de sofredores do complexo Capitão Fausto: não tanto uma recusa em abraçar a idade adulta, mas antes uma vontade de o fazer devagarinho e nos próprios termos, nem que para isso se falhe, desde que se celebre o falhanço e se compreende que essa mudança não se escreve tão facilmente como acontece. Que se dane. Em vez do emprego para a vida, ver como param as modas, quem sabe fazer mochilão, contar cada tostão, talvez cantar mais esta canção.
[“Faço as Vontades”:]
Se em Capitão Fausto Têm os Dias Contados a banda pareceu assumir a música como a única coisa que sabe fazer bem — extraordinariamente bem — e com isso ajudou uma geração a celebrar a volatilidade da sua cabecinha e respetiva envolvente, A Invenção do Dia Claro foi ao Brasil miscigenar-se e voltou de lá com mais uma mão cheia de magníficas canções que têm o desamor como grande fardo existencial.
Porém, onde o disco anterior surpreendia — os menos avisados como eu — pelo absurdo talento para a escrita de canções, este regresso dos Capitão Fausto responde com uma travessia transtlântica feita em velocidade de cruzeiro, própria de quem parece fazer isto a dormir. Mesmo a infusão tropicalista não nos deve desviar do essencial: são oito canções — as mesmas oito de 2016 — que parecem fáceis pela absoluta normalidade que assumem no reportório da banda. São até, apesar da novidade formal, um apelo a um certo conservadorismo. As origens da banda viram-na deambular bastante, mas a sua escrita parece ter encontrado habitação permanente. Desta vez os Capitão Fausto são um bocadinho mais do mesmo. Ao contrário do que a vertigem da produção musical por vezes parece ditar, mais do mesmo é bom. Neste caso, é muito bom.
As mesmices dos Capitão Fausto estão todas cá e as três primeiras canções largadas no mundo já o indicavam: melodias unfuckwithable que dão bom nome à triste nomenclatura “pop rock” e uma construção servida em registo vocal blasé disposto a convencer um exército de ouvintes mais pela lábia do que pelos decibéis. A camada instrumental adicionada em São Paulo, bem como as vozes femininas, acrescentam às canções uma alegria por vezes desconcertante, por se ver amaranhada em versos lânguidos de um Casanova cheio de lamentos — “não há surpresas quando eu te encontrar (…) dei ordem à cabeça para esquecer a paixão”, dúvida perene — “andava mal parado e sem saber nesta história se é obrigatório que esta chegue ao final”, e confissões melosas provocadas pelos resquícios de uma saída à noite: “fazer das tripas carvão, voltar ao sítio escavado, encontrar lá a tristeza, se deixar escondida acaba por passar, deixa-a ficar então”.
[“Sempre Bem”:]
Estes últimos versos, de “Sempre Bem”, são uma coisa que os Capitão Fausto fazem muito neste punhado de canções: conceder derrota, cair com charme, falhar melhor, celebrar o azar ao amor. O espírito faz lembrar uma das melhores vozes da Trojan Records, Dennis Brown, que no devido tempo soube eternizar:
“Let me down easy
give me time
to get over you babe”
Tanto num caso como noutro, o ouvinte derrete-se e espera que acabem juntos. As declarações de afeto sucedem-se ao longo do disco, assim como a aparente incapacidade de fazer de tudo isso uma história de amor com final feliz, magninamente proclamada naquela que é, muito provavelmente, a melhor canção dos Capitão Fausto ou, vá, a melhor canção dos Capitão Fausto neste momento, uma forma adequada de falar de canções dos Capitão Fausto: “Amor A Nossa Vida”, quarto tema do disco, começa com um piano que parece saído de muitos sítios mas em especial de Goon, disco-cometa de Tobias Jesso Jr., álbum reproduzido 378 vezes no meu Spotify, e se lança num poema:
“Amor, a nossa vida andava torta desde o verão
Lançava-se à corrida, mas perdeu a direção
Perdeu porque à partida nos faltou respiração
E na primeira curva, amor, ficámos sem
Ficámos sem pulmão
Já ‘tou por tudo
Ninguém sabe ao certo
O que é viver neste entrudo
Tentar ficar perto
Ter um peito que é mudo
E quer ser aberto
Até que acaba estourado
Eu fico em qualquer lado
Não vou saber mudar
Quando é que essa partida
Nos deixou na contramão?
Porque é que o nosso amor
Tem de acabar num abanão?
Por mim voltamos a tentar com mais dedicação
Até que a nossa vida, amor, se veja livre
Desta maldição
Já ‘tou por tudo
Ninguém sabe ao certo
O que é viver neste entrudo
Tentar ficar perto
Ter um peito que é mudo
E quer ser aberto
Até que acaba estourado
Eu fico em qualquer lado
Não vou saber mudar
Não vou saber mudar
Não vou saber mudar
Não vou saber mudar
Não vou saber mudar (Não vou saber mudar)
Não vou saber mudar (Não vou saber mudar)
Não vou saber mudar (Não vou saber mudar)
Não vou saber mudar (Não vou saber mudar)
Não vou saber mudar (Não vou saber mudar)”
[“Amor, a Nossa Vida”:]
Não é exagero. É poesia. Ouçam com atenção. Agradeçam a quem deu cabo da relação e fez do amor um tema incontornável deste disco. É esse um dos grandes méritos dos Capitão Fausto: a escrita tornou-os mais inclusivos, ainda mais de todos. O amor, o dos namoricos, matrimónios ou escapadelas, problema magno do primeiro mundo, não é exclusivo deles. A banda-geração voltou a crescer musicalmente e, apesar de não saber bem o que fazer ao seu coração partido, vai ajudar a remendar uns quantos e trazer mais gente para o seu mundo. Recuperando o verso de há pouco, seremos nós a ficar sem, ficar sem pulmão, assim, tal e qual a voz as canta brincando com o ritmo e significado das palavras como se fosse fácil. Não é, e as palavras finais de Tomás Wallenstein explicam-nos isso:
“Se eu não ficar contigo
é tudo em vão”
Nada disso, meu caro. Só por isto já valeu a pena.