O cenário não era habitual num festival que, com tantos concertos a decorrer em simultâneo, apela ao movimento constante entre palcos e salas de espetáculo. Quando faltavam dez minutos para a meia-noite, mais de metade do Musicbox já estava preenchido. Mais sintomático do que isso: na metade mais próxima do palco, o espaço era já ínfimo, com algumas pessoas a tentarem ocasionalmente “furar” a muralha e aproximar-se da dianteira, acotovelando-se e aproveitando as pequenas nesgas que encontravam.

Faltavam dez minutos para a meia-noite e faltavam dez minutos para o início do concerto de Conan Osiris no Musicbox, sala de concertos do Cais do Sodré com lotação para cerca de 300 pessoas. Em 15 a 20 minutos, a sala encher-se-ia por completo. Foi ainda assim com alguns — poucos — espaços vazios na retaguarda da plateia que o próximo representante de Portugal no Festival Eurovisão da Canção entrou em palco.

A reação foi entusiástica, com gritos e aplausos para a entrada em cena de Conan — chapéu escuro na cabeça, casaco de pelo — e do seu dançarino João Reis Moreira, com um casaco aberto por cima do tronco nu. Conan Osiris começa a cantar “Borrego” e os telemóveis erguem-se na plateia — alguns registarão o momento em que Osiris canta “a lua não é menina / com quem se queira dançar”, mas com lua ou sem lua, Conan Osiris vai dançando quando pode, mais quando não tem de cantar.

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“Assim ‘tá bem”, eis como reage Conan Osiris ao primeiro grande aplauso da noite. “Como é que é, pessoal? É festão, esquece lá isso”, atira do palco, para logo a seguir revelar que está “lentamente” a aderir aos avanços tecnológicos e até já utiliza uns auriculares especiais para se ouvir devidamente, in-ears. “Por isso é que até ‘tou a cantar melhor”, brinca. Curiosamente, efeitos da tecnologia ou não, está mesmo: a voz sai-lhe mais segura, o canto mais afinado, o alcance vocal parece reforçado.

“Ó baralho” segue-se a “Borrego” e traz Conan Osiris a cantar “quem é que baralhou / quem é que fez batota”. Atrás do músico e cantor, o dançarino vai andando de uma ponta à outra do (relativamente pequeno) palco, cismando nas curtas caminhadas em diagonal. É também atrás de Conan Osiris que João Reis Moreira vê o cantor à sua frente parar, beber alguma água para se refrescar. É aí que o ouve justificar a sede — “vocês dão calor a um gajo” —, é aí que o vê dizer “get it down bitches”, baixar-se e requebrar (lascivamente, dirão os mais puritanos).

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O público vai aderindo com fervor. Entre os cerca de 300 espectadores, há alguns estrangeiros, mas nos lugares mais próximos do palco estão fãs devotos e (percebe-se com facilidade) antigos, que conhecem as letras todas de cor, que servem de coro ocasional quando Conan Osiris lhes aponta o microfone. É esse fervor, traduzido também em gritos com o seu nome e aplausos, que lhe faz dizer “you really hyping me up tonight”, esta frase também perceptível a estrangeiros.

Faz-se uma pausa para um momento mais solene e Conan Osiris diz que na próxima terça-feira vai estar no Capitólio, também em Lisboa, “com um monte de pessoal” num concerto solidário, que vai ser transmitido na RTP e — aproveita o músico para dizer — acontecerá num dia em que a “RTP vai ter uma hotline” aberta para chamadas telefónicas de solidariedade com Moçambique, devastado pelo ciclone Idai.

“Barcos (Barcos)” é uma boa escolha para transitar entre seriedade e festa desbragada, com os seus versos “para que é que eu ainda olho para o mar / se eu já sei como é que há-de acabar”. Antecede “Coruja”, tema que remonta já ao penúltimo álbum de Conan Osiris (Música, Normal) e em que este canta por exemplo “e às oito da manhã / o tudo e o nada espetaram-me um linguadão”. A acompanhar, João Reis Moreira na sua dança-transe, parecendo capaz de se desconjuntar a qualquer momento mas dando uma expressão teatral a uma música que por si já a pede. Ouve-se ainda “Titanic”, festa desbragada desta vez cantada com mais acerto do que em ocasiões anteriores — “quem é que já esteve aqui em concertos meus? quando é que não me enganei na ‘Titanic’ “, perguntava antes ao público; desta vez, pelo menos, (já) não houve enganos.

Conan vai olhando o público nos olhos, cantando e dançando quando pode (aliás, quando consegue), a dada altura dança aliás como se estivesse num rancho folclórico, voltando a provar que para si as tradições não têm donos nem são estanques, podem ser dançadas com batidas esquizóides e modernas.

Há ainda um falso alarme sobre uma seriedade de que abdica — ainda ameaça um “calma que um fadista é sempre sério, certo?”, mas não há seriedade que resista ao ritmo, em cima do palco ou na plateia. Não se resiste perante um Conan Osiris a enaltecer as qualidades do doce que é o guardanapo, perante uma canção aparentemente inofensiva e despolitizada em que de repente aparecem os verbos incisivos, “pai com pai / pai com mãe / mãe com mãe, / não interessa, / o que interessa é dar amor”.

Consumada a interpretação de “Adoro Bolos”, Conan Osiris faz uma pausa, pega no microfone e convida os cinco “baddest bitches” da plateia a subir ao palco para dançar com ele. Acaba por subir praticamente uma dezena, que faz a festa ao som de “Celulitite”, um dos temas mais populares do músico. Claro que não poderia faltar também “Telemóveis”: é “a fatídica”, diz Conan, acrescentando que está “farto da net” mas que as pessoas que o ouvem, vão aos concertos e apoiam “são os maiores”.

De telemóveis para o passado, chega-se a “Amália”, talvez a canção mais original e forte das já lançadas pelo músico e cantor, aquela que — embora curta e aparentemente simples — mais comove e maravilha, do distinto álbum SILK. O tema é cantado com pompa e circunstância, com Conan Osiris a caminhar pelo público, como aliás é percetível no vídeo abaixo. Há aplausos para si e para o seu dançarino — apresentado como “João Reis fucking Moreira”. Há uma despedida atirada à socapa com um “beijinhos bebés”. Há uma saída de cena que parece provisória, tal é o barulho dos gritos “Conan! Conan! Conan!” que se ouvem na plateia, mas que afinal é definitiva. As luzes ligam-se, a música muda, Conan já não vai voltar.

Feito sobretudo para programadores, agentes e melómanos descobrirem música emergente de todo o mundo, o MIL teve muito mais, durante os seus dois dias de horários regulares (houve um pré-arranque, com uma sesão de concertos e DJ sets no B.Leza; o restante pode ser consultado aqui). Teve os sinais auspiciosos deixados por Pedro Mafama no bar Roterdão, cheio até às escadas, na véspera. Teve a rapper e cantora portuguesa há muito residente na Bélgica, Blu Samu, teve a poesia e spoken word de Bobbie Johnson no Roterdão (concerto com muito menos gente e energia do que o de Pedro Mafama), teve a afro-Lisboa cósmica dos Octa Push no Titanic Sur Mer (surpreendidos por a casa estar meio cheia, dado que havia muita coisa a acontecer àquela hora) e teve as tiradas políticas, anti-racistas e anti-homofóbicos, do rap-trap do brasileiro Edgar.

Também não faltou no MIL música de dança enérgica, lusófona e francesa, nesta madrugada de sexta-feira para sábado, graças a  Nídia, Dope Saint Jude, Ibaaku e, Conan Osiris foi porém, como seria sempre, o grande destaque do festival MIL. Para ele, este será talvez mais um concerto (apenas mais um) entre aqueles que dará até se deslocar a Israel em maio para participar na Eurovisão; para os que puderam ouvi-lo por uma das últimas vezes (acredita-se, espera-se face ao impacto da sua música) num clube de pequena-média dimensão de Lisboa, para apenas 300 pessoas, foi uma oportunidade invulgar.

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Se tudo corresse mal a Conan Osiris daqui para a frente, o que é um cenário com grau de probabilidade baixo — até pelo impacto da sua música, cada vez mais notório a julgar também pelas paixões e ódios que já provoca — “teremos sempre” o Musicbox. O desafio está, por ora, em contornar as luzes dos holofotes e continuar a pensar em compor, ter novas canções, reinventar-se na medida do que a identidade lhe permita e afirmar-se em definitivo num circuito nacional e internacional de concertos. Conan Osiris está pronto e cada vez mais confiante. Daqui, não se avistam para já nuvens nem sinais de tempestade.