“Todos estamos estupefactos com a notícia deste incêndio, mesmo os profissionais da história da arte”, comentou ao Observador o historiador José António Falcão, pouco depois de se saber de um incêndio de grandes dimensões na Catedral de Notre-Dame, em Paris, nesta segunda-feira à tarde.

“Sei que estavam a decorrer trabalhos de renovação e pode ter sido um acidente, mas também não excluo a hipótese de ter havido uma intenção”, disse. “Conheço bem os colegas franceses que se ocupam dos monumentos históricos, sei que são extremamente rigorosos e de grande competência, por isso ainda me surpreendo mais. Há toda uma escola francesa de conservação de monumentos”, acrescentou.

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Licenciado em história da arte, mestre em museologia e doutor em teoria e história da arquitetura, José António Falcão é desde o ano passado um dos peritos do Comité Científico Internacional para os Lugares de Religião e Ritual, que tem sede em Paris. Desempenha também o cargo de vice-presidente da Europae Thesauri, uma associação sem fins lucrativos que junta gestores, conservadores e historiadores em torno de arte sacra, ou tesouros eclesiásticos. Em fevereiro último, contou ao Observador, participou numa reunião da Europae Thesauri que decorreu precisamente em Notre-Dame.

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“É um edifício de enorme importância não só para o estudo do gótico francês, mas também do neogótico, ou seja, do estilo que historicamente interpretou o gótico. É um dos sítios mais importantes da história da arte a nível mundial”, classificou. “Para além da referência artística e da faceta como ícone turístico, Notre-Dame tem repercussões literárias imensas, habita o imaginário literário europeu. Victor Hugo teve um grande papel nesse aspeto.”

Para José António Falcão, que não dispunha de informação sobre a origem do incêndio ou a sua extensão, informação que lentamente chegava às redações ao fim da tarde de segunda-feira, “qualquer que seja o dano será sempre grave”.

“A estrutura do monumento é em pedra e tem uma cobertura adicional que assenta sobre madeirame, asnas e outras estruturas, mas quero acreditar que a grande eficiência dos bombeiros parisienses será suficiente para dominar o incêndio.” Além disso, sublinhou, “existem planos, projetos, maquetes e registos fotográficos desde o século XIX, o que facilitará qualquer possível reconstrução”.

Incêndio em Notre-Dame deixa marcas no que é “a identidade artística europeia”

O incêndio na Catedral de Notre-Dame, em Paris, “deixa marcas naquilo que é a identidade artística da civilização europeia”, disse à Lusa o historiador Marco Daniel Duarte, um dos coordenadores do projeto Rota das Catedrais, do Ministério da Cultura.

“O fogo na Catedral de Notre-Dame deixa marcas naquilo que é a identidade artística da civilização europeia. A Europa tem matrizes que vêm da Grécia e de Roma, mas sabemos que se constrói, fundamentalmente, a partir da Idade Média, e na Idade Média as catedrais são o edifício por excelência da identidade europeia, Notre-Dame simboliza tudo isto”, disse o diretor do Museu do Santuário de Fátima.

“Ao arderem aqueles pináculos é toda uma civilização que está a arder, e que se confronta com a sua própria identidade, que neste momento sofre”, disse Marco Daniel Duarte, membro da Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa, que afirmou que lhe custa falar perante tanta “devastação”.
“Toda a cultura da catedral — que significa não apenas a parte religiosa, enquanto sede episcopal, mas também como centro da cidade que se desenvolve à sua volta, a catedral estava na Idade Média no centro da cidade –, é uma grande metáfora daquilo que é a civilização europeia”, afirmou.

“Para além dos pináculos que vêm abaixo, dos vitrais que se partem, das abóbadas desmoronadas, das gárgulas, há todo um património imaterial que está associado aquilo que estamos a assistir”.

O investigador referiu ainda que o incêndio põe em causa alguns objetos devocionais, nomeadamente relíquias da “Paixão de Cristo” que são veneradas pelos católicos nesta altura do calendário religioso, nomeadamente uma parte da coroa de espinhos de Jesus Cristo.

Marco Daniel Duarte é doutorado em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, é académico-correspondente da Academia Portuguesa da História, membro da Associação Portuguesa de Historiadores da Arte e do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, da Universidade de Coimbra