A cortesia tem destas coisas. É ela que faz Martí Perarnau dizer, logo ao início, que “é um prazer” estar ali à conversa, a bater umas bolas em forma de palavras com alguém que, do outro lado, só arranha o castelhano. Na verdade, a coisa funciona ao contrário. Porque não é todos os dias que se fala com quem passou um ano a fazer companhia ao treinador que muitos admiram, mas poucos, muito poucos, conhecem para lá das conferências de imprensa em que só aparece e fala por estar obrigado a aparecer e a falar. Por muito que ganhe, encante ou inove, Pep Guardiola, aos 44 anos, tem uma regra: não dá entrevistas. Mas deixou que uma pessoa o seguisse para todo o lado durante uma temporada.

Martí não o esperava, de todo. “Hombre, foi grande surpresa”, admite, ao recordar o que sentiu quando Pep, homem com quem só falara uma vez, em 2010, concordou em o ter à perna, como uma sombra, ao longo da primeira época (2013/2014) no Bayern de Munique. “Como eu via os treinos, os onzes, as estratégias nos cantos ou as contratações, disse-me: ‘Tens liberdade para ver tudo o que quiseres, mas não saias daqui e digas com quem vou jogar amanhã’”, conta. Martí Perarnau respeitou e, um ano depois, juntou num livro tudo o que viveu nos bastidores do clube e na sombra do treinador que, esta quarta-feira (19h45), começa a discutir os quartos-de-final da Liga dos Campeões com o FC Porto.

Perarnau viu e ouviu muita coisa. Fazia questão em, dia sim, dia sim, chegar a Säbener Strasse, centro de treinos do Bayern, antes de toda a gente, logo pela manhã. Tentava “não [se] fazer notar” e “passar despercebido”, pois tinha a consciência que, ali dentro, era “uma pessoa estranha”. Ou mais, sendo um jornalista, era até “um bicho raro” no meio de jogadores que torcem o nariz a essa espécie. O tempo, contudo, foi curando a estranheza e Martí foi-se entranhando até lhe começarem a chamar “a árvore de Säbener Strasse”. Assim foi reparando nos hábitos de Guardiola que compilou no “Herr Pep” — ou Senhor Pep –, título do livro.

“Se tivesse que definir o Pep Guardiola diria que é um homem que duvida de tudo. A origem destas dúvidas não é a insegurança ou o medo do desconhecido: é a busca da perfeição. Sabe que é impossível alcançá-la, mas vai atrás dela na mesma”.

E o hoje amigo de Guardiola escreveu que Pep, como de costume, se deverá fechar numa sala no dia antes do encontro frente ao FC Porto, para ver “dois ou três vídeos do adversário, escrever umas notas num papel” e, se possível tenta chegar “ao momento impressionante” que, como explica o treinador no livro, “dá sentido à profissão” — “Quando me apercebo que já a tenho, que dei com a chave para ganhar. É uma sensação que dura apenas um minuto, um minuto e vinte segundos talvez, mas é o que dá sentido à minha profissão.”

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Martí Perarnau fala com o Observador a um domingo, um dia após o Bayern de Munique bater (3-0), na Bundesliga, o Eintracht Frankfurt. E o escritor catalão não tinha dúvidas. “Seguramente está a pensar no FC Porto. O Pep não ficou careca a pensar sobre futebol, mas pensa quase 24 horas por dia nisso. Eu não respiro futebol e também fiquei careca!”, brinca, ao falar do treinador que, no Barça, entre 2008 e 2012, conquistou 14 das 19 competições em que participou. E em ano e meio na Alemanha já levou para casa os canecos de uma Bundesliga e uma Taça de Alemanha. E antes de todos os jogos de todas essas caminhadas, Pep Guardiola fez o mesmo: “Não descansou um segundo enquanto não esmiuçou e avaliou todas as hipóteses.”

(Quando Pep Guardiola, o treinador, se sentou à conversa com Fernando Trueba, o realizador de cinema.)

Por isso Martí, mesmo não tendo falado com Pep recentemente, acredita que o treinador já saberá de cor os embalos que Danilo e Alex Sandro trazem desde trás, os ziguezagues que Brahimi insiste fazer com a bola coladinha ao pé direito, os cruzamentos que mais costumam sair dos pés de Quaresma ou as bolas que Herrera e Óliver levantam para, depois de os dragões concentrarem os adversários de um lado do relvado, a colocarem no lado oposto. “Pep tenta aprender o máximo sobre o adversário. Quanto melhor conheceres um rival, melhores armas encontrarás para o defrontar”, resume Perarnau, ao falar do que alimenta, e consome, os dias de Guardiola.

Com o catalão existe “a lei dos 32 minutos“, coisa que resume no livro com a ajuda de Manuel Estiarte, adjunto do treinador  desde os tempos do Barça e antigo campeão olímpico e mundial de polo aquático, com a Espanha: “Leva-lo a comer a um restaurante, para que esqueça o futebol, mas ao fim de 32 minutos reparas que já está a viajar. Os olhos vão para o teto, acenas com a cabeça, como a dizer que te está a ouvir, mas não te vê, já está a pensar outra vez no lateral esquerdo da equipa adversária, nas coberturas do médio centro, nos apoios ao extremo… Passa meia hora e regressa à sua análise interior.”

A primeira vez de Pep?

E estas conversas privadas, a caçada por ideias e soluções na própria mente, ocupou-se nos últimos dias do FC Porto e da equipa montada por Julen Lopetegui, basco, de 48 anos, com quem o catalão Pep coincidiu durante três épocas no Barcelona. “Desconheço se costumam, ou não, conversar. Tendo em conta o ritmo das suas vidas, com certeza que não o fazem todas as semanas. Mas sei que os antigos companheiros de equipa do Barça falam muitas vezes por telefone”, admite Martí Perarnau, antes de, mesmo sem certezas, acreditar que Pep “já terá falado umas duas ou três vezes com Lopetegui”, esta época.

Não para um “olá, como estás”, mas, provavelmente, para “falarem sobre o Shakthar Donetsk”, que os dragões defrontaram na fase de grupos da Champions e os bávaros encontraram nos oitavos-de-final da prova. Em fevereiro, aliás, seriam Pep e Julen a encontrarem-se na bancada do Vicente Calderón, quando o Atlético de Madrid recebeu o Bayer Leverkusen. Pareciam amigalhaços e estavam a dias de saberem que, umas semanas depois, as equipas que treinam iriam partilhar um relvado — e, sobretudo, apenas uma bola.

FBL-GER-BUNDESLIGA-HAMBURG-BAYERN MUNICH

É com ela que tanto um, como outro, querem sempre dominar o jogo e controlar o rival. As estatísticas são redutoras e especialistas no engano, mas há números que são honestos: e o Bayern e o FC Porto, com 67% e 60,9%, são as equipas que, em média, mais tempo tiveram a bola nos pés nas oito partidas que já jogaram nesta Liga dos Campeões. Para Pep Guardiola, isto é uma novidade. “Creio que é a primeira vez, desde que está no Bayern, que um adversário quer tanto a bola como ele. Na Alemanha isto não acontecia, é uma das coisas às quais se teve de habituar”, resume, entre risos.

Martí não vê os dragões, ou Lopetegui, a renunciarem à bola e deixarem de bater o pé por ela com os alemães. “Nunca virará as costas à bola. Mas há sempre uma equipa com um pequeno plus, uma pequena vantagem e, sem tu quereres, essa equipa tira-te a bola”, antevê, embora, nesta eliminatória, estime que a companhia da coisa redonda ande “mais ou menos nos 55-45, por aí”.

Qual tiki-taka, qual quê

Nem dragões, nem bávaros jogam ao tiki-taka. Ao toca e vai, ao vício no passe, à expressão que “teve muito êxito” e “está muito bem conseguida”, mas que “nunca era utilizada, por ninguém, no Barça”. O termo, diz Martí Perarnau, foi pegado por jornais, adeptos e televisões à boleia das conquistas da seleção espanhola e do Barcelona, e sempre “chateou” Pep Guardiola. “Vai contra o que ele pensa, pois o tiki-taka foi-se associando a um estilo de jogo muito horizontal, de estar a passar a bola sem vontade de que acontecesse alguma coisa”, explica.

“Se tenho uma linha de cinco adversários à minha frente, querem que circule a bola de um lado para outro, em forma de ‘u’, sem perigo. Encostam-se à linha de quatro defesas e não deixarão nenhum espaço. Mas tenho de abrir os extremos, mover essa linha de cinco, agitá-la, desordená-la, fazê-la crer que iria para um lado e ‘záás’, cavar-lhes um passe por dentro para um dos meus atacantes. E pronto, aí já os tenho completamente voltados para a própria baliza. Foi assim que consegui marcar a diferença.”
Pep Guardiola

Nos treinos, tanto na Alemanha como na Catalunha, o que mais se ouvia era rondo (‘meiinho’) ou juego de posición. “Como jogador, Guardiola exibiu o que mais tarde mostraria como treinador: face ao receio de ser atacado, escolhe ser ele quem ataca. É um treinador que evita o jogo de choque e as entradas duras através do passe, que persegue a velocidade no jogo mediante a manipulação da bola”, lê-se, no “Herr Pep”. Depois há a paciência que exige aos jogadores, com bola ou os quatro segundos de pressão intensa que lhes pede, lá na frente, após a perderem. “Ao início foi difícil explicar tantos pequenos conceitos e ideias para chegar a uma maneira de jogar. Se falando a mesma língua já é complicado, imagina ter que fazê-lo com um idioma tão diferente como o alemão. Mas os jogadores eram muito inteligentes, mostraram muita vontade em aprender e deram muito deles próprios”, garante Perarnau.

As lesões, contudo, não largam muitos deles e no Dragão não estarão Bastian Schweinsteiger, um dos cérebros que puxa pela cabeça no meio campo, Arjen Robben, o canhoto irrequieto que acelera as jogadas, Frank Ribéry, o francês que faz o mesmo, do lado oposto, Mehdi Benatia, o atlético central marroquino, ou David Alaba, o austríaco que Pep vê como o jogador mais moderno do mundo. Julen Lopetegui, há dias, disse que o Bayern de Munique “podia fazer poupanças”, enquanto o FC Porto, nem pensar. Ao que parece, ninguém poderá arriscar a fazê-las.

Mas risco é coisa que Martí Perarnau tem na ambição, como teve quando tentou a sorte e conseguiu que Pep consentisse andar com ele atrás durante um ano. E se pudesse repetir a aventura de estar na sombra de outro treinador? “Hombre, sempre pensei no Mourinho. Não o conheço, nem sequer vejo isso como possível, mas é muito bom treinador, carismático e diferente do Guardiola em muitas coisas. Seria um bom perfil”, confessa. Hombre, então, boa sorte, acabamos nós a desejar.